terça-feira, 3 de novembro de 2015

A Porta do Sangue João Paulo O Costa. «… o sangue dos combatentes escorreu abundantemente por aquela entrada, que hoje é denominada como Porta da Almedina ou Porta do Sangue, em memória da luta brutal ali travada há mais de oitocentos anos»

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Julho de 1190
«A fragmentação do império almorávida, no inicio do século XII, possibilitou o rápido avanço dos cristãos para sul, e o novo reino de Portugal assenhoreou-se do estuário do Tejo em 1147 e os seus cavaleiros chegaram a Beja. A reunificação do mundo islâmico ocidental sob o império almóada em meados do século inverteu o curso dos acontecimentos, e quando a hoste de Afonso Henriques ainda fazia conquistas, já o novo império ganhava fôlego a sul para lançar as suas vagas reconquistadoras. Nos últimos anos do reinado do fundador, a cristandade já estava de novo na defensiva e Santarém sofreu um ataque perigoso, no Verão de 1184, mas após três semanas de cerco, com o socorro de Fernando II de Leão, foi possível derrotar o invasor, e o próprio sultão Yusuf I foi ferido de morte nos combates.
Aproveitando nova passagem de cruzados pela costa portuguesa, el--rei Sancho I ainda estendeu momentaneamente os seus domínios até Silves, em 1189, mas era impossível manter conquista tão distante e a cidade voltaria para as mãos dos mouros dois anos depois. Com efeito, os almóadas estavam no auge do seu poder e o sultão Yacub Al-Mansur, sentindo-se ameaçado e desafiado pela investida portuguesa, atravessou o estreito de Gibraltar para atacar o ocidente peninsular. Logo os reis de Castela e de Leão se apressaram a enviar embaixadas pedindo a paz, o que Al-Mansur aceitou, pois o seu alvo era mesmo o reino de Portugal. Em 1190 desencadeou a primeira invasão, que teria por objectivo penetrar no coração do reino inimigo, pelo que o seu exército cruzou o Tejo, flagelou Santarém e atacou Torres Novas, que ocupou ao cabo de duas semanas de cerco; há notícia de esquadrões muçulmanos terem então devastado a região de Alcobaça e de terem atacado Leiria, e é possível que alguns grupos avançados se tenham acercado de Coimbra, o centro político da monarquia lusa, onde residia habitualmente o seu rei.
A cidade do Mondego seria o alvo principal do sultão. Desde 1128, quando lhes foi concedido Soure, que cabia aos Templários a defesa da cidade pelo controlo da cintura de fortalezas que lhe serviam de guardas avançadas; em 1160 os cavaleiros do Templo construíram um castelo mais a sul, numa das vias de acesso a Coimbra, nas margens do rio Nabão. Ainda mais a sul, Almourol fazia de sentinela, mas não tinha condições para resistir à passagem de milhares de invasores. Assim, na sua caminhada para norte, Al-Mansur tinha de dominar o castelo de Tomar, que era defendido por Gualdim Pais, mestre da ordem em Portugal e veterano das campanhas da Terra Santa. O próprio sultão comandou o ataque, mas apesar da enorme desproporção das forças em presença, os cavaleiros resistiram. Foram seis dias de luta encarniçada, cujo clímax ocorreu no momento em que uma porta terá sido derrubada pelos mouros, que foram depois travados nas ruas circunvizinhas e rechaçados; e reza a lenda que a mortandade foi enorme e que o sangue dos combatentes escorreu abundantemente por aquela entrada, que hoje é denominada como Porta da Almedina ou Porta do Sangue, em memória da luta brutal ali travada há mais de oitocentos anos.
O sucesso dos cavaleiros do Templo, associado ao adoecimento do sultão e de muita da sua soldadesca, levou à interrupção da invasão. Foi a última vez que forças muçulmanas atravessaram o Tejo em território português. O perigo almóada não se atenuou e no ano seguinte Al-Mansur realizou nova campanha, mas destinada sobretudo a consolidar o seu domínio sobre a margem esquerda do Tejo. Recuperou Silves e dominou todas as fortalezas do Alentejo, à excepção de Évora; os seus exércitos chegaram à vista de Lisboa e arrasaram Palmela, Coina e Almada. Em 1195, o rei Afonso VIII de Castela sofreu uma grave derrota na Batalha de Alarcos e a pressão sobre a cristandade peninsular prosseguiu, tendo os mouros conquistado Trujillo em 1196, e só quinze anos mais tarde os cristãos reequilibraram as forças depois da vitória na Batalha de Las Navas de Tolosa, onde Afonso VIII alcançou a sua desforra.
O reinado de Sancho I (1185-1211) coincidiu com esta conjuntura militar adversa, a que se acrescentou um relacionamento difícil, e muitas vezes belicoso, com o vizinho leonês, pelo que o governo do Povoador se concentrou essencialmente na organização do território que havia resistido à ofensiva almóada, travada em Tomar por Gualdim Pais e os seus cavaleiros, em Julho de 1190». In João Paulo Oliveira Costa, Episódios da Monarquia Portuguesa, Círculo de Leitores, Temas e Debates, 2013, ISBN 978-989-644-248-4.

Cortesia de CL/TDebates/JDACT