«(…) Para tornar tudo mais
confuso, o termo flip book também se aplica
a uma novidade, a um pequeno livro com uma série de imagens ou fotografias
ligeiramente alteradas em páginas sucessivas. Quando estas são passadas
rapidamente, é criada uma ilusão de animação, de um cavalo a galopar e a dar um
salto, por exemplo. Mais tarde, Henry teve muito tempo para pensar na animação
que escolheria para o seu flip book
se se tratasse desse tipo de livro: seria um homem a caminhar cheio de confiança,
de cabeça bem erguida, até tropeçar e cair no mais espectacular dos
trambolhões. Deve referir-se, pois é um pormenor fundamental para as
dificuldades com que Henry se deparou para o seu tropeção e o seu espectacular
trambolhão, que o set flip book tratava
do assassinato de milhões de civis judeus, homens, mulheres e crianças, pelos
nazis e os muitos colaboradores voluntários destes últimos, na Europa do século
passado. Essa horrível e prolongada erupção de anti-semitismo é amplamente
conhecida, por uma estranha convenção que se apropriou de um termo religioso,
como Holocausto. Especificamente, o duplo livro de Henry versava as formas nas
quais esse evento era representado em histórias. Ao longo de vários anos a ler livros
e a ver filmes sobre o assunto, Henry notara que havia muito pouca verdadeira ficção
acerca do Holocausto. A abordagem do tema era quase sempre histórica, factual,
documental, episódica, testemunhal, literal. Os documentos arquetípicos eram
memórias de sobreviventes, como a obra Se Isto É Um Homem, de Primo Levi, por
exemplo. Enquanto a guerra, para pegar noutro evento humano cataclísmico, era
constantemente transformada noutra coisa qualquer.
A guerra é sempre trivializada,
isto é, apresentada como menos do que aquilo que realmente é. As guerras
modernas fizeram dezenas de milhões de vítimas e devastaram países inteiros, no
entanto as representações que transmitem a verdadeira fiabilidade da guerra têm
de competir para serem vistas, ouvidas e lidas por entre inúmeras histórias de
acção de guerra, comédias de guerra, romances de guerra, ficções científicas de
guerra e propaganda de guerra. Apesar de tudo isso, quem se lembraria de juntar
banalização e guerra numa só frase? Algum grupo de veteranos alguma vez se
queixou? Não, porque é assim que falamos de guerra, de muitas maneiras e com
muitos objectivos. Com essas representações tão diversificadas, conseguimos
compreender o que a guerra significa para nós. Mas não foi tomada concedida,
uma liberdade poética semelhante no tratamento do Holocausto. Esse evento
terrível foi representado quase exclusivamente segundo uma única escola: o realismo
histórico. A história, sempre a mesma história, foi sempre enquadrada pelas
mesmas datas, localizada nos mesmos sítios, com as mesmas personagens. Houve
algumas excepções: Henry lembrava-se de Alaus, do artista gráfico americano Art
Spiegelman.
VerAmar,
de David Grossman, também apresentava uma linha de abordagem diferente. Mas
mesmo nesses dois casos, a gravidade específica do evento reconduzia o leitor
aos factos originais e históricos literais. Se uma história começava num ponto
posterior do tempo, ou noutro ponto do espaço, o leitor era inevitavelmente levado
a recuar no tempo ou a transpor fronteiras, até chegar a 1943 e à Polónia, como o protagonista de A Seta do Tempo, de Martin
Amrs. Assim, Henry começou a interrogar-se: porquê esta suspeita relativamente
à imaginação, porquê a resistência à metáfora artificiosa? Uma obra de arte
resulta por ser verdadeira, não por ser real. Não havia um risco no facto de se
representar o Holocausto de uma forma sempre subordinada à factualidade?
Certamente que entre os textos relacionados com o que acontecera, esses diários,
memórias e histórias vitais e indispensáveis, havia lugar para os comentários da
imaginação. Outros eventos históricos, também horríveis, tinham sido tratados
por artistas para o bem geral. Para citar apenas três exemplos bem conhecidos
de testemunho artificioso: Orwell com O Triunfo dos Porcos, Camus com A Peste,
Picasso com Guernica. Em cada um desses casos, o artista debruçara-se sobre uma
tragédia imensa e descontrolada, encontrara o seu coração e representara-o de
um modo não literal e compacto. O pesado fardo da História era resumido e
embalado numa mala. A arte como uma mala, leve, portátil, essencial: um tal
tratamento não seria possível, ou mesmo necessário, para a maior tragédia dos
judeus da Europa? Para exemplificar e argumentar a favor dessa forma
suplementar de reflectir acerca do Holocausto, Henry escrevera um romance e um ensaio.
Haviam-lhe custado cinco anos de trabalho árduo. Quando terminou, fez circular
o duplo manuscrito pelos seus editores. Foi então convidado para um almoço. Lembram-se
do homem que tropeça e cai no flip book?
Henry atravessou o Atlântico de avião para participar nesse almoço, que se
realizou em Londres, num dia de Primavera, durante a Feira do Livro de Londres».
In
Yann Martel, Beatriz e Virgílio, tradução de Fátima Andrade, Editorial
Presença, Lisboa, 2010, ISBN 978-972-234-385-5.
Cortesia
EPresença/JDACT