Carta
a António Feliciano Castilho (I)
«Exmo
Sr.
Acabo de ler um
escripto de v. ex.ª onde, a proposito de faltas de bom-senso e de bom-gosto,
se falla com aspera censura da chamada eschola litteraria de Coimbra, e entre
dois nomes ilustres se cita o meu, quasi desconhecido e sobre tudo desambicioso. Esta
minha obscuridade faz com que a parte de censura que me cabe seja sobre maneira
diminuta: em quanto que, por outro lado, a minha despreoccupação de fama
litteraria, os meus habitos de espirito e o meu modo de vida, me tornam essa
mesma pequena parte que me resta tão indifferente, que é como que se a nada a
reduzissemos.
Estas circumstancias
pareceriam sufficiente para me imporem um silencio, ou modesto ou desdenhoso.
Não o são, todavia. Eu tenho para fallar dois fortes motivos. Um é a liberdade
absoluta que a minha posição independentissima de homem sem pretenções litterarias
me dá para julgar desassombradamente, com justiça, com frieza, com boa-fé. Como
não pretendo logar algum, mesmo infimo, na brilhante phalange das reputações
contemporaneas, é por isso que, estando de fóra, posso como ninguém avaliar a
figura, a destreza e o garbo ainda dos mais luzidos chefes do glorioso esquadrão.
Posso tambem fallar livremente. E não é esta uma pequena superioridade neste
tempo de conveniencias, de precauções, de reticencias, ou, digamos a cousa pelo
seu nome, de hypocrisia e falsidade. Livre das vaidades, das ambições, das miserias
d'uma posição, que não pretendo, posso fallar nas miserias, nas ambições, nas
vaidades d'esse mundo tão extranho para mim, atravessando por meio d'ellas e
sahindo puro, limpo e innocente.
A este primeiro
motivo, que é um direito, uma faculdade só, accresce um outro, e mais grave e
mais obrigatorio, porque é um dever, uma necessidade moral. É esta força desconhecida
que nos leva muitas vezes, ainda contra a vontade, ainda contra o gosto, ainda
contra o interesse, a erguer a voz pelo que julgamos a verdade, a erguer a mão pelo
que acreditamos a justiça. É ella que me manda fallar. Não que a justiça e a verdade
se offendessem com v. ex.ª ou com as suas apreciações. Verdade e justiça estão tão
altas, que não têm olhos com que vejam as pequenas cousas e os pequenos homens das
infimas questiunculas litterarias d'um ignorado canto de terra, a que ainda se
chama Portugal.
Não é isso o que as offende. Mas
as idéas que estão por de trás dos homens; o mal profundo que as cousas apenas
miseraveis representam; uma grande doença moral accusada por uma pequenez
intellectual; as desgraças, tanto para reflexões lamentosas, d'esta terra,
reveladas pelas miserias, tão merecedoras de despreso, dos que cuidam dominal-a;
isso é que afflige excessivamente a razão e o sentimento, o que prende o olhar
ainda o mais desdenhoso a estas baças intrigas; isso é que levanta esta questão
do raso das personalidades para a elevar até á altura d'uma questão de
principios, e que dá ás ridiculas chufas, que entre si trocam uns tristes
litteratos, todo o valor d'uma discussão de philosophia e de historia.
Sim, ex.mo sr. Eu não sei se v.
ex.ª tem olhos para ver tudo isto. Cuido que não: porque a intelligencia dos
habeis, dos prudentes, dos espertissimos é muitas vezes cega em lhe faltando
uma cousa bem pequena, que se encontra nos simples e nos humildes, a boa-fé. Á
luz d'ella, porem, eu hei de sempre ver uma pessima acção, digna de toda a importancia
d'um castigo, nas impensadas e infelizes palavras de v. ex.ª, dignas quando muito
d'um sorriso de desdem e do esquecimento. E se eu nem sequer me daria ao incommodo
de erguer a cabeça de cima do meu trabalho para escutar essas palavras, entendo
que não perco o meu tempo, que sirvo a moral e a verdade, censurando, verberando
a deshonesta acção de v. ex.ª.
Porque é uma acção deshonesta. O
que se ataca na eschola de Coimbra (talvez mesmo v. ex.ª o ignore, porque ha malevolos
innocentes e inconscientes), o que se ataca não é uma opinião litteraria menos
provada, uma concepção poetica mais atrevida, um estylo ou uma idêa. Isso é o
pretexto, apenas. Mas a guerra faz-se á independencia irreverente de
escriptores, que entendem fazer por si o seu caminho, sem pedirem licença aos mestres,
mas consultando só o seu trabalho e a sua consciencia. A guerra faz-se ao escandalo
inaudito d'uma litteratura desaforada, que cuidou poder correr mundo sem o sello
e o visto da chancelharia dos grãos-mestres officiaes. A guerra faz-se á
impiedade d'estes hereges das lettras, que se revoltam contra a auctoridade dos
papas e pontifices, porque, ao que parece, ainda a luz de cima lhes não
escreveu nas frontes o signal da infallibilidade. Faz-se contra quem entende
pensar por si e ser só responsavel por seus actos e palavras...
Agora
quem move estes ridiculos combates de phrases é a vaidade ferida dos mestres e dos
pontifices; é o espirito de rotina violentamente incommodado por mãos rudes e inconvenientes;
é a banalidade que quer dormir socegada no seu leito de ninharias; é a vulgaridade
que cuida que a forçam, nós só lhe queremos puchar as orelhas!» In
Antero de Quental, Bom-Senso e Bom-Gosto, Carta ao Exmo Sr. António Feliciano
Castilho, Inprenda da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1865, (livros de
Lavado, Lisboa; Livraria da Viuva Moré), Pedro Saborano, the Project Gutenberg
ebook, 2009, ISO 8859-15.
Cortesia
de PGutenberg/JDACT