Carta
a António Feliciano Castilho (IV)
«(…) Não
é traduzindo os velhos poetas sensualistas da Grecia e de Roma; requentando fabulas
insossas diluidas em milhares de versos semsabores; não é com idyllios grotescos
sem expressão nem originalidade, com allusões mythologicas que já faziam bocejar
nossos avós; com
phrases e sentimentos postiços de academico e rhetorico; com visualidades infantis
e puerilidades vãs; com prosas imitadas das algaravias mysticas de frades
estonteados; com
banalidades; com
ninharias; não
é, sobre tudo, lisongeando o máo gosto e as pessimas idêas das maiorias, indo
atrás d'ellas, tomando por guia a ignorancia e a vulgaridade, que se hão de
produzir as ideias, as sciencias, as crenças, os sentimentos de que a
humanidade contemporanea precisa para se reformar como uma fogueira a que a
lenha vai faltando.
Mas fóra de tudo
isto, d'estas necedades tradicionaes, é o nevoeiro, é o methaphysico, é o inatingível,
diz v. ex.ª.
Todavia, quem pensa e
sabe hoje na Europa não é Portugal, não é Lisboa, cuido eu: é Paris, é Londres,
é Berlim. Não é a nossa divertida Academia das Sciencias, que revolve,
decompõe, classifica e explica o mundo dos factos e das idêas. É o Instituto de
França, é a Academia Scientifica de Berlim, são as escholas de philosophia, de
historia, de mathematica, de physica, de biologia, de todas as sciencias e de
todas as artes, em França,
em Inglaterra, em Allemanha. Pois bem: a Allemanha, a Inglaterra, a França, comprazem-se
no nevoeiro, são incomprehensiveis e ridiculas, são methaphysicas tambem. As
tres grandes nações pensantes são risiveis deante da critica fradesca do sr. Castilho.
Os grandes genios modernos são grotescos e despreziveis aos olhos baços do banal
metrificador portuguez.
O grande espirito philosophico do
nosso tempo, a grande creação original, immensa da nossa edade, não passa de
confusão e embroglio desprezivel para o professor de ninharias, que cuida que
se fustiga Hegel, Stuart Mill, Augusto Comte, Herder, Wolff, Vico, Michelet,
Proudhon, Littré, Feuerbach, Creuzer, Strauss, Taine, Renan, Buchner, Quinet, a
philosophia allemã, a critica franceza, o positivismo, o naturalismo, a
historia, a methaphysica, as immensas creações da alma moderna, o espirito
mesmo da nossa civilisação.... que se fustiga tudo isto e se ridicularisa e se
derriba com a mesma semcerimonia com que elle dá palmatoadas nos seus meninos
de 30, 40 e 50 annos, de Lisboa, do Gremio, da Revista Contemporanea!
Quem seguir tudo isto vai com o
pensamento moderno; com as tendencias da sciencia; com os resultados de trinta
annos de critica; com a nova eschola historica; com a renovação philosophica;
com os pensadores; com os sabios; com os genios; vai com a França; vai com a
Allemanha, mas que importa?, não vai com o sr. Castilho!, não vai com o novo
methodo repentista!, não vai com o moderno folhetim portuguez!
O metrificador das Cartas d'Echo
diz ao pensador da Philosophia da natureza, tira-te do meu sol! O
mythologo do diccionario da fabula diz ao profundo descubridor da Symbolica, és
um ignorante! A rethorica portugueza diz á sciencia, ao espirito moderno, cala-te
d'ahi, papelão!
É que tudo isto não passa de
idêas. Ora ha uma cousa que o sr. Castilho tomou á sua conta, que não deixa em
paz, que nos prometteu destruir..., é a methaphysica..., é o ideal...
O
ideal! palavra mystica; de gothica configuração; quasi impalpavel;
espiritualista; impopular; que o artigo de fundo repelle; que desacreditaria o
deputado do centro que a empregasse; que Victor Hugo adora e de que se riem os
localistas; que não chega para um folhetim e que enche o maior poema; immensa
aos olhos dos que a vêem com os olhos fechados e que nunca viram os que os
trazem sempre arregalados; palavra pessima para uma rima de madrigal; palavra
que faz desmaiar as beatas; grotesca num botequim; disforme numa sala; medonha
numa assembleia de litteratos horacianos..., decididamente v. ex.ª devia odiar
esta desgraçada palavra!» In Antero de Quental, Bom-Senso e Bom-Gosto,
Carta ao Exmo Sr. António Feliciano Castilho, Inprenda da Universidade de
Coimbra, Coimbra, 1865, (livros de Lavado, Lisboa; Livraria da Viuva Moré), Pedro
Saborano, the Project Gutenberg ebook, 2009, ISO 8859-15.
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