domingo, 1 de novembro de 2015

Grácia Nasi. Esther Mucznik. «A razão pela qual el-rei ordenou que levassem os filhos dos judeus e não os filhos dos mouros era que os judeus, pelos seus pecados, não tinham reinos, nem domínios, nem cidades, nem aldeias…»

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… e ali lhes deitatam a sua água de baptismo...
«(…) Esperaria Manuel I uma aceitação voluntária e massiva da conversão por parte dos judeus? Se assim era, enganou-se. Mas nada deteria o rei na sua decisão: numa sexta-feira, a 19 de Março de 1497, muito antes de findar o prazo para a saída, estipulado para Outubro, foi dada a ordem de baptismo compulsivo de todas as crianças de quatro a catorze anos no domingo seguinte, dia da Páscoa judaica. Seguindo a táctica de atingir os pais através dos filhos, estes seriam retirados aos seus progenitores para serem educados na fé cristã. As crianças foram assim arrancadas aos pais em verdadeiros cenários de horror: Os pais, levados ao desespero, vagavam como dementes, as mães resistiam como leoas. Muitos preferiam matar os filhos com as próprias mãos; sufocavam-nos no último abraço ou atiravam-nos em poços ou rios, suicidando-se em seguida. Condoídos, muitos cristãos escondiam crianças judias para poupar os pais a tal sofrimento. Os próprios cristãos, escreve um autor anónimo, movendo-os a piedade, e em face dos bramidos e choros que os tristes pais e amorosas mães faziam por aqueles pedaços das suas entranhas que, à força, viam arrancar deles sem esperança de mais poder lograr, escondiam e salvavam crianças. Fernando Coutinho, líder do partido clerical que no Conselho Real se opusera à expulsão, e mais tarde bispo de Silves escreverá uns anos depois: Vi com os meus próprios olhos como muitos foram arrastados pelos cabelos à pia baptismal, como um pai, com a cabeça encoberta, sob dores e lamentações, acompanhou o seu filho e, de joelhos, clamou ao Todo-Poderoso que fosse testemunha de pai e filho, unidos como professos da lei mosaica, desejarem morrer como mártires do judaísmo. Vi actos ainda mais pavorosos, verdadeiramente incríveis, que lhes foram infligidos.
Mas o terror das conversões forçadas ainda não acabara. Com a aproximação da data limite para a saída, em Outubro de 1497, três portos, Lisboa, Porto e Algarve foram designados para o embarque. Mas no último momento o rei mudou de opinião, restringindo-o a Lisboa. Cerca de vinte mil judeus juntaram-se então na cidade, sendo conduzidos ao palácio dos Estaus, no Rossio, onde antes de serem alvo de um baptismo colectivo foram sujeitos a todo o tipo de pressões e ameaças. Abraão Saba, médico, que já fora expulso de Castela em 1492 e a quem levaram os dois filhos, conta que foram mantidos, nos Estaus, sem comer nem beber durante quatro dias, e que os que conseguiram resistir foram arrastados pelas barbas e cabelos, até às igrejas, enquanto outros se suicidavam atirando-se das janelas.
Mais uma vez Manuel I manda tirar aos pais, para os baptizar, os filhos até vinte e cinco anos de idade. Depois destes, também os pais foram arrastados às pias baptismais e ali lhes deitaram a sua água (de baptismo), e tocando com ela uns e mal alcançando outros lhes impuseram sobre isso nomes da cristandade, e os meteram em poder de velhos cristãos para os submeter à religião e guarda da sua fé. Expirado o prazo de 30 de Outubro, deixa de haver, oficialmente, judeus em Portugal como conta Garcia Resende na sua crónica rimada: Os Judeus vi cá tornados todos num tempo cristãos os mouros então lançados fora do reino passados. Como se depreende desta crónica de Garcia Resende houve uma diferença de tratamento relativamente a judeus e mouros. Enquanto aos primeiros não foi permitida a saída, optando o rei por os manter no reino como cristãos, aos segundos foi-lhes permitido deixar o país.
Porquê esta diferença de tratamento? Terá sido por temor de uma eventual vingança dos príncipes mouros, na Ásia e em África, contra os cristãos que aí habitavam, enquanto os judeus não tinham quem os defendesse, como afirmará mais tarde Damião Góis? A razão pela qual el-rei ordenou que levassem os filhos dos judeus e não os filhos dos mouros era que os judeus, pelos seus pecados, não tinham reinos, nem domínios, nem cidades, nem aldeias, mas são, em todas as partes em que vivem, peregrinos e súbditos, desprovidos de poder e de autoridade para executar os seus desejos contra as ofensas e os males exercidos sobre eles... Ou esta diferença de atitude terá estado mais relacionada com o importante papel social, económico e científico desempenhado pelos judeus em Portugal, reforçado ainda pela vinda dos exilados espanhóis? Provavelmente pelos dois motivos». In Esther Mucznik, Grácia Nasi, A judia portuguesa do século XVI que desafiou o seu próprio destino, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2010, ISBN 978-989-626-244-0.

Cortesia de ELivros/JDACT