As patologias da dívida. Ceder
o coração ao inimigo
«(…) Convirá a este propósito distinguir o colonialismo que para nós, modernos,
à semelhança do fascismo e do comunismo, é condenável por princípio e os vários
e complexos processos de colonização, simultaneamente benéficos e perniciosos,
cujo historial é reconstituído pelo trabalho meticuloso do historiador fiel aos
factos e à clareza. Em todo o caso, a colonização não terá impedido a criação
de laços e a preservação de relações de estima e amizade meio século após o seu
término. Enquanto franceses, dois mil anos após estes acontecimentos, não
podemos deixar de reconhecer que a invasão romana da Gáia foi afinal positiva e
que, se Vercingétorix não tivesse sido derrotado por César em Alésia e a
cultura greco-latina não tivesse penetrado no território, teríamos sido durante
muitos séculos uma miríade de tribos rudes com cultos religiosos obscuros. Em
moldes similares, até ao século XV, o domínio árabe em Espanha permitiu o
aparecimento de uma civilização extraordinária e o próprio império otomano teria
sido mais breve se, sob certos aspectos, não tivesse representado um autêntico
progresso. O que não quer dizer que, num ou noutro caso, as nações não se
tenham insurgido contra a dominação estrangeira e lhe tenham posto um fim (nunca
é demais lembrar que a conquista e o expansionismo não foram feitos
exclusivamente europeus; todas as grandes civilizações, os Persas, os Mongóis,
os Chineses, os Aztecas e os Incasm, foram colonizadoras; os muçulmanos
invadirem a Pérsia, a Índia, o sueste asiático, o Sudão e o Egipto, destruindo
as religiões locais e massacrando os rebeldes; mas estes factos raramente são
mencionados na historiografia oficial; sintomática deste estado de espírito é a
excelente compilação de Marc Ferro sobre os crimes do colonialismo; não há qualquer
referência à conquiste árabe nem ao império otomano; politicamente correcto, a
quanto obrigas). Num regime colonial, os povos colonizados são infantilizados,
rebaixados e humilhados, enquanto as potências coloniais lhes corrompem a alma,
espezinham as suas crenças e deturpam a sua essência. Lemos hoje com assombro
os documentos coloniais que justificam o domínio das raças inferiores pelas raças superiores e parece-nos insensata a
obstinação de uma certa esquerda durante a Quarta República (Guy Mollet,
François Mitterrand, Robert Lacoste) quer querer manter a Argélia no seio
francês. Dizer que desaprovamos é pouco, está fora de questão, Eis a razão pela
qual a tentativa de embargo de um certo Islão vingativo, o dos wahabitas
sudaneses ou dos Irmãos Muçulmanos, às sociedades europeias se assemelha a uma
iniciativa colonial que deve ser contrariada. Ou o Islão se torna, entre nós,
numa religião como as outras ou esbarra com uma sólida resistência por parte de
homens livres para os quais o jugo do fanatismo, dois séculos depois da
Revolução Francesa, é exasperante.
Como pode uma civilização como a europeia, responsável pelas piores
atrocidades e pelas realizações mais sublimes, ver-se exclusivamente pelo
prisma da maldição? Se a Europa foi dominada por uma verdadeira paixão pelo genocídio, foi também ela
que permitiu conceptualizar certos crimes como os genocídios e que, depois de 1945, se distanciou da sua própria barbárie
para dar a esta palavra um sentido preciso, arriscando-se a fazer recair a
acusação sobre ela própria. A Europa é simultaneamente uma fabulosa máquina que
produz malefícios e que os contém. A singularidade da Europa reside no facto de
não se esquivar aos seus fantasmas e conhecer na perfeição os males de que padece
e a fragilidade das barreiras que a separam da sua própria ignomínia. Esta
extrema lucidez impede-a de apelar a uma cruzada do Bem contra o Mal e, em
alternativa, incita-a a propor o conflito entre o preferível e o detestável,
segundo a fórmula de Raymond Aron. Os governantes europeus nunca subscreveriam
as palavras de W. Bush, no dia após os atentados do 11 de Setembro de 2001. Há
algo que nós, filhos do Velho Mundo, sabemos: não somos bons (mas perfectíveis).
A Europa é o pensamento crítico em acção: um pensamento que desde o Renascimento
assenta no cerne da dúvida que o nega e sobre o qual recai o olhar de um juiz
intransigente. A razão ocidental é esta aventura única de auto- reflexão a que
nenhum ídolo resiste e que ataca a tradição e a autoridade. Mal nasceu, a
Europa revoltou-se contra si e cedeu o seu coração ao inimigo, submetendo-se a
um reexame permanente. Se a incriminação do sistema é integrada no próprio
sistema e se, por exemplo, a história colonial é contestada desde o começo
pelas diversas correntes do anticolonialismo, estes espectos devem-se ao facto
de a sociedade europeia, para além de se reger pelo princípio da expansividade,
ser um espaço de pluralismo e de relatividade de crenças e credos. Acrescem aos
antagonismos entre países em determinada área geográfica as intrínsecas e
fundamentais divisões nacionais. Não defendo que a Europa é superior apenas por
duvidar da sua superioridade. Todavia, pelo menos sob este especto, difere de
todas as outra culturas que não duvidam sistematicamente das suas certezas. Tal
como o Velho Mundo, ninguém se exime à dúvida». In Pascal Bruckner, La Tyrannie
de la Pénitence, Essai sur le Masochisme Occidental, Editions Grasset
Fasquelle, 2006, O Complexo de Culpa do Ocidente. Publicações Europa-América,
2008, ISBN 978-972-1-05943-6.
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