Margareth Rago. A
aventura de contar-se. Foucault e a escrita de si de Ivone Gebara
«A decepção com a política
institucional pode, em muitos momentos, impedir a percepção de outras formas de
luta política e de intensa crítica cultural que se desenvolvem no quotidiano,
quase que marginalmente, transformando os padrões culturais, desafiando o
regime de verdades instituído, abrindo espaços para deslocamentos subjectivos e
colectivos. Nesse contexto, conceitos são ferramentas fundamentais para percebermos
analiticamente as manifestações e os pequenos movimentos que explodem
molecularmente, e que podem tomar importantes dimensões, desde que sejam
potencializados. Penso em particular nas várias práticas feministas que têm
sido produzidas nas últimas décadas, no Brasil, mas que podem passar despercebidas
se não forem evidenciadas e analisadas numa perspectiva crítica adequada. Para tanto,
Foucault
fornece importantes conceitos que permitem constatar a construção de novos
valores éticos e de novas práticas políticas e subjectivas, na actualidade.
Muito embora os feminismos tenham uma relação bastante ambígua com esse
filósofo, o que atribuo em parte ao desconhecimento de sua extensa obra,
especialmente as problematizações do último
momento de sua vida, várias intelectuais feministas têm procurado construir novas
pontes entre as suas reflexões e aquelas que constituem o foco de interesse dos
feminismos, não apenas no Brasil.
Dentre estas, Tânia Swain,
historiadora e editora da revista digital labrys, estudos feministas, tem insistido na
importância do conceito de dispositivo da
sexualidade para percebermos as estratégias disciplinares e os jogos de
poder que fazem parte do sistema sexo / género desde a Modernidade, e que são
reactualizados incessantemente no presente, capturando os corpos e impondo uma
heterossexualidade normalizadora. No hemisfério
norte, McLaren, no seu livro Foucault, Feminism and Embodied Subjectivity (2002),
Dianna Taylor, na coletânea de artigos intitulada Feminism and The Final
Foucault (2004) e Chloe Taylor, em The Culture of Confession: from
Augustin to Foucault. A genealogy of the confessing animal (2009)
avançam nas suas apropriações das análises e problematizações foucaultianas, ao
desdobrá-las em conexão com as questões feministas sobre a subjectividade, a
ética e a produção da verdade.
Essas instigantes análises
convergem com as preocupações que têm caracterizado os trabalhos desenvolvidos
no interior do grupo de pesquisa Género, Subjectividades e Cultura Material,
criado no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de
Caminas,desde os anos 2000. Neste, desenvolvemos, entre outras,
pesquisas que visam destacar as práticas feministas transformadoras na arte, na
literatura, no cinema e na política, no Brasil e na América Latina, a partir de
vários conceitos de Foucault, como os de estéticas
da existência, cuidado de si, escrita de si e parresia. Trata-se, a nosso ver, de um novo e instigante campo de pesquisas
históricas, que certamente se reforça com o encontro de outras produções
feministas orientadas pela filosofia de Foucault e que também
se nutre dos aportes de Deleuze e Guattari. É nesse campo de investigação,
portanto, que o presente texto se situa, tendo como foco privilegiado de
análise a narrativa autobiográfica da filósofa feminista Ivone Gebara, autora
de As águas do meu poço. Reflexões sobre experiências de liberdade (2005),
de entre outros importantes livros. Viso experimentar possibilidades de
interpretação da sua escrita, na chave aberta por Foucault com suas reflexões
sobre a constituição da subjectividade ética na escrita de si dos antigos. Pergunto, portanto, pelas possíveis
práticas de estetização da existência que emergem no contexto dos feminismos
contemporâneos, norteada ainda, pelas questões colocadas por Deleuze, quando,
ao fazer um retrato de Foucault no
livro Pourparlers (Negociações), pergunta pelos lugares onde novas formas
de existir podem estar emergindo [(...) uma existência artista, quais são os
nossos processos de subjectivação irredutíveis aos nossos códigos morais? Onde
e como estão sendo produzidas novas subjectividades? O que podemos encontrar
nas comunidades contemporâneas?)] Assim, destaco a leitura feminista que Gebara
constrói em relação ao seu próprio passado e à história recente do país, e a
maneira relacional de pensar-se a si mesma, a partir dos textos escritos e das
entrevistas que realizamos entre 2008 e 2009.
Nascida
numa família sírio-libanesa, no coração da cidade de São Paulo, em meados dos
anos quarenta, Gebara vive, há muitos anos, num bairro do concelho do Recife e
dedica-se à luta pelos direitos da população pobre e das mulheres, em especial.
Escritora, professora e conferencista feminista e socialista, como se afirma, publicou
inúmeros livros, traduzidos em diversos idiomas, em que expõe sua profunda
crítica às formas da dominação capitalista e patriarcal, sobretudo aquelas
operantes no interior da igreja e da religião. Destacam-se: Vulnerabilidade,
Justiça e Feminismos. Antologia de textos (2010); Rompendo o silêncio.
Uma fenomenologia feminista do mal (2000); O que é Cristianismo? (2008);
O que é teologia feminista? (2007); O que é teologia? (2006)
[…] Além de inúmeros artigos publicados, Gebara constantemente realiza
palestras destinadas às mulheres das regiões economicamente pobres, as mais
carentes de informação e de atenção, em toda a América Latina, para não falar
de outros continentes, tornando-se portanto uma figura internacionalmente conhecida
e admirada». In Luís António Souza, Thiago Teixeira Sabatine, Bóris Ribeiro Magalhães
(organizadores), Sexualidade, Corpo e Direito, Editora Cultura Académica,
Oficina Universitária, Faculdade de Filosofia e Ciências, 2010, Unesp, Campus
de Marília, 2011, ISBN 978-857-983-136-2.
Cortesia
de Unesp/CampusMarília/JDACT