Duquesa de Borgonha. O caso de Calais
«(…) A sublevação estendeu-se a Bruxelas, Lovaina e Malines. Piratas vindos
da Holanda e da Zelândia unindo-se aos insurrectos de Calais, que continuava
sob controlo inglês, arruinaram o comércio que se fazia por via marítima e
desceram à Flandres para pilhar. O duque procurava, mas em vão, que estas acções
não deteriorassem o comércio com os portos germânicos de Hamburgo, Lubeque e
Bremen. Em Maio de 1437, uma nova
insurreição, que vitimou dezenas de soldados ducais bem como o capitão Jean Villiers,
senhor de Isle-Adam, pôs Filipe em dificuldade. As terras da Flandres
atravessavam um período de penúria, miséria e fome, enquanto em Paris uma epidemia
provocava mais de 50 mil mortos. Na sequência destes acontecimentos a duquesa
foi solicitada a intervir junto do duque por deputações de magistrados e
donatários dos ofícios enviados pela cidade de Bruges, que ela recebeu em
Hesdin e Arras. Nesta cidade da Picardia fora concluído um tratado de paz que
humilhava os habitantes de Bruges. Estes tiveram de aceitar uma dezena de
execuções capitais, consumadas a 30 de Abril de 1438, uma pesada multa de 200 000 ridders e foi ainda acordado indemnizar a duquesa com várias somas em
ouro por terem-na prendido e pelo seu papel de intermediária no tratado. Tocada
na sua sensibilidade por este excesso, a duquesa prescindiu da última
recompensa e, reconciliante, tornou a Bruges depois das decapitações, enquanto
Filipe lá não voltaria senão em 1440.
Dona Isabel foi expressamente coagida pelo duque a aceitar a reparação de
desobediência da parte das autoridades de Bruges, que pediram para vê-la, e
comportou-se como uma mensageira de paz entre aqueles e Filipe. Implicada de
novo nos meandros da violência guerreira, que regulava os conflitos de poder da
época, a duquesa, com os dons da sua própria natureza, conseguia forjar novos
equilíbrios que excluíam o excesso absoluto. As responsabilidades executivas de
dona Isabel no seio da administração do ducado revestiam-se de vários aspectos
segundo as circunstâncias, dadas as suas capacidades e qualidades. Em tempo normal,
ocupava-se da gestão da economia; e dos assuntos da defesa, em que chegou a
tomar decisões, por ocasião dos constantes afrontamentos guerreiros. Mas, mais
do que isso, pela sua natureza generosa, exerceu uma função insubstituível
enquanto elo de ligação e de reconciliação entre o duque, os seus vassalos e os
administradores.
Os cronistas perguntaram-se durante muito tempo qual o modelo que a
duquesa teria seguido nas múltiplas escolhas que alargaram consideravelmente o
círculo de relações do ducado. Os estudos levados a cabo sobre sua mãe, a
rainha dona Filipa, que abandonou a corte do duque de Lencastre em 1387 para se tornar mulher de João I de
Portugal, esclarecem-nos em muitos pontos. Com efeito, ela notabilizou-se por
ter impelido o rei a acções decisivas, em particular o seu envolvimento na
expansão transatlântica e na perseguição aos mouros infiéis. Apoiando-se nos
religiosos cristãos, fez adoptar pela força costumes litúrgicos ingleses. E,
mantendo continuadamente relações com o seu país, conservou junto de si, em Portugal,
um pessoal britânico numeroso, como dona Isabel fez com os portugueses.
O regresso às relações com os ingleses
Razões económicas estiveram na origem do rápido
restabelecimento das trocas comerciais com os ingleses e dona Isabel, dada a
sua posição privilegiada, desempenhou aí o seu papel. Enviou de facto vários
mensageiros (Sanche Lalaing e, secretamente, o seu mordomo Louis Chantemerle),
ao outro lado da Mancha para tomar contacto com o seu tio Henri de Beaufort,
bispo de Winchester, onde foram encetadas as conversações de Gravelines. A
duquesa negociou igualmente com as cidades têxteis flamengas o pagamento de um imposto
sobre a lã importada de Inglaterra. Dona Isabel começou por ir ao encontro da embaixada
de Beaufort, perto de Gravelines, no fim de Janeiro de 1439. Os ingleses mostraram-se conciliadores e prontos a libertar
Carlos Orleães, feito prisioneiro com outros nobres na desgraçada batalha de
Azincourt, em 1415, face ao
desejo por ela manifestado de discutir as condições do restabelecimento de uma
paz estável. A duquesa partiu acompanhada de sábios, conselheiros eclesiásticos
e seculares; o duque preferiu a reserva. Ele acabava de obter uma reaproximação
com França ao negociar o casamento do seu filho Carlos, conde de Charolais, com
Catarina, filha do rei, acordo que foi assinado por Crèvecoeur, embaixador do
duque, em Setembro de 1439, em Blois».
In
Daniel Lacerda, Isabelle de Portugal – duchesse de Bourgogne, Éditions Lanore,
2008, Isabel de Portugal, Duquesa de Borgonha, Uma Mulher de Poder no coração
da Europa Medieval, tradução de Júlio Conrado, Editorial Presença, Lisboa,
2010, ISBN 978-972-23-4374-9.
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