quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

31 com os Poetas. Final do ano de 2015. «… aquilo que a gente sonha sem saber de sonhar, aquela boca risonha que nunca nos quis beijar, aquela vaga ironia que uns olhos tiveram um dia para a nossa emoção; tudo isso nos dá o agrado, flores que flores são nos jardins do passado…»

jdact

Feliz Ano Novo. A juventude sucede ao ano velho…

A Bárbara escrava
«Aquela cativa
que me tem cativo,
porque nela vivo
já não quer que viva.
Eu nunca vi rosa
em suaves molhos,
que para meus olhos
fosse mais formosa.

Nem no campo flores,
nem no céu estrelas
me parecem belas
como os meus amores.
Rosto singular
olhos sossegados,
pretos e cansados,
mas não de matar.

Uma graça viva,
que neles lhe mora,
para ser senhora
de quem é cativa.
Pretos os cabelos,
onde o povo vão
perde opinião
que os louros são belos.

Pretidão de Amor,
tão doce a figura,
que a neve lhe jura
que trocara a cor.
Leda mansidão,
que o siso acompanha;
bem parece estranha,
mas bárbara não.

Presença serena
que a tormenta amansa;
nela, enfim, descansa
toda a minha pena.
Esta é a cativa
que me tem cativo,
e, pois nela vivo,
é força que viva».
Luís de Camões (1524?-1580), Endechas

«… tenho sono talvez porque toquei onde sinto o animal que abandonei e o sono é uma lembrança que encontrei…»

«Aquela nunca vista formosura,
aquela viva graça e doce riso,
humilde gravidade e alto aviso,
mais divina que humana real brandura.

Aquela alma inocente e sábia e pura
que entre nós cá fazia um paraíso,
ante os olhos a trago e lá a diviso
no céu triunfar da morte e sepultura.

Pois por quem choro, triste? Por quem chamo
sobre esta pedra dura a meus gemidos,
que nem me pode ouvir nem me responde?

Meus suspiros nos céus sejam ouvidos;
e enquanto a clara vista se me esconde,
seu despojo amarei, amei e amo».
António Ferreira (1528-1569), Soneto

«… tenho sono talvez porque toquei onde sinto o animal que abandonei e o sono é uma lembrança que encontrei…»

«De Amor escrevo, de Amor falo e canto;
e se minha voz fosse igual ao que amo,
esperara eu sentir na que em vão chamo
piedade, e na gente dor e espanto.

Mas não há pena, ou língua, ou voz, ou canto
que mostre o amor por que eu tudo desamo,
nem o vivo fogo em que me sempre inflamo,
nem de meus olhos o contínuo pranto.

Assim me vou morrendo, sem ser crida
a causa por que em vão mouro contente,
nem sei se isto que passo é vida ou morte.

Mas inda da que eu amo fosse ouvida
e crida minha voz. e da vã gente
nunca entendida fosse minha sorte».
Pêro Andrade Caminha (152?-1589), Soneto

«… só um crepúsculo do mundo deixe chegar à sonolência que se sente; e a alma se desfaça como um peixe atado pelos dedos de um demente…»

«Tão alto me alevanta a fantasia
ajudada a esperança do desejo,
que a vista perco já, donde me vejo,
daquele estado vil, em que me via.

Mas pretende da inveja a vã porfia
a luz escurecer, por que me rejo,
e derribar com seu rigor sobejo
de tão alto lugar minha ousadia.

Mas vós, senhora, pois que meu cuidado
está seguro em vós, com segurança
lhe deveis sustentar seu alto assento

e se haveis, que merece castigado:
a pena é minha, e a culpa da esperança
que as asas empenou ao pensamento».
Fernão Álvares Oriente (1540-1600), Soneto

«… só um crepúsculo do mundo deixe chegar à sonolência que se sente; e a alma se desfaça como um peixe atado pelos dedos de um demente…»

Crisfal
«Antre Sintra, a mui prezada,
e serra de Ribatejo
que Arrábida é chamada,
perto donde o rio Tejo
se mete n’água salgada,
houve um pastor e pastora,
que com tanto amor se amaram
como males lhe causaram
este bem, que nunca fora,
pois foi o que não cuidaram.

A ela chamavam Maria
e ao pastor Crisfal,
ao qual, de dia em dia,
o bem se tornou em mal,
que ele tão mal merecia.
Sendo de pouca idade,
não se ver tanto sentiam
que o dia que não se viam,
se via na saudade
o que ambos se queriam.

Algumas horas falavam,
andando o gado pascendo;
e então se apascentavam
os olhos, que, em se vendo,
mais famintos lhe ficavam.
E com quanto era Maria
pequena e, tinha cuidado
de guardar melhor o gado
o que lhe Crisfal dizia;
mas, em fim, foi mal guardado;

Que, depois de assim viver
nesta vida e neste amor,
depois de alcançado ter
maior bem para maior dor,
em fim se houve de saber
por Joana, outra pastora,
que a Crisfal queria bem;
(mas o bem que de tal vem
não ser bem maior bem fora,
por não ser mal a ninguém).
[…]
Cristóvão Falcão (1515-?), Crisfal

«… não sei o que fiz da vida, nem o quero saber; se a tenho por perdida, sei eu o que é perder? Mas tudo é música se há alma onde a alma está, e há um vago, suave, sono, um sono morno de agrado, quando regresso, dono, aos jardins do passado…»

JDACT
ISBN 978-972-201-944-6