Sobre a nudez forte da verdade. O manto
diáfano da fantasia
«Decidi
compor, nos vagares deste Verão, na minha quinta do Mosteiro (antigo solar dos
condes de Lindoso), as memórias da minha vida, que neste século, tão consumindo
pelas incertezas da inteligência e tão angustiado pelos tormentos do dinheiro,
encerra, penso eu e pensa meu cunhado Crispim, uma lição lúcida e forte. Em
1875, nas vésperas de Santo Antonio, uma desilusão de incomparável amargura
abalou o meu ser; por esse tempo minha tia, Patrocínio das Neves, mandou-me do
Campo de Santana onde morávamos, em romagem a Jerusalém; dentro dessas santas
muralhas, num dia abrasado do mês de Nizam, sendo Poncio Pilatos procurador da
Judeia, Élio Lama, Legado Imperial da Síria, e J. Cairás, Sumo Pontífice,
testemunhei, miraculosamente, escandalosos sucessos; depois voltei, e uma
grande mudança se fez nos meus bens e na minha moral. São estes casos,
espaçados e altos numa existência de bacharel como, em campo de erva ceifada,
fortes e ramalhosos sobreiros cheios de sol e murmúrio, que quero traçar, com
sobriedade e com sinceridade, enquanto no meu telhado voam as andorinhas, e as
moutas de cravos vermelhos perfumam o meu pomar. Esta jornada à terra do Egipto
e à Palestina permanecerá sempre como a glória superior da minha carreira; e
bem desejaria que dela ficasse nas letras, para a posteridade, um monumento
airoso e maciço. Mas hoje, escrevendo por motivos peculiarmente espirituais,
pretendi que as páginas íntimas, em que a relembro, se não assemelhassem a um
Guia Pitoresco do Oriente. Por isso (apesar das solicitações da vaidade),
suprimi neste manuscrito suculentas, resplandecentes narrativas de ruínas e de costumes...
De
resto esse país do Evangelho, que tanto fascina a humanidade sensível, e bem
menos interessante que o meu seco e paterno Alentejo; nem me parece que as
terras, favorecidas por uma presença messiânica, ganhem jamais em graça ou
esplendor. Nunca me foi dado percorrer os lugares santos da Índia em que o Buda
viveu, arvoredos de Migadaia, outeiros de Veluvana, ou esse doce vale de
Rajágria, por onde se alongavam os olhos adoráveis do Mestre perfeito, quando
um fogo rebentou nos juncais, e Ele ensinou, em singela parábola, como a
ignorância é uma fogueira que devora o homem, alimentada pelas enganosas
sensações de vida, que os sentidos recebem das enganosas aparências do mundo.
Também não visitei a caverna de Hira, nem os devotos arcais entre Meca e
Medina, que tantas vezes trilhou Maomé, o profeta excelente, lento e pensativo
sobre o seu dromedário. Mas, desde as figueiras de Betânia até as águas coladas
de Galileia, conheço bem os sítios onde habitou esse outro intermediário divino,
cheio de enternecimento e de sonhos, a quem chamamos Jesus Nosso Senhor; e só
neles achei bruteza, secura, sordidez, soledade e entulho. Jerusalém é uma vila
turca, com vielas andrajosas, acaçapada entre muralhas cor de lodo, e fedendo
ao sol sob o badalar de sinos tristes.
O
Jordão, fio de água barrento e peco que se arrasta entre arcais, nem pode ser
comparado a esse claro e suave Lima que lá baixo, ao fundo do Mosteiro, banha
as raízes dos meus amieiros; e todavia vede! Estas meigas águas portuguesas não
correram jamais entre os joelhos de um Messias, nem jamais as roçaram as asas
dos anjos, armados e rutilantes, trazendo do céu a terra as ameaças do
Altíssimo! Entretanto, como há espíritos insaciáveis que, lendo de uma jornada pelas
terras da Escritura, anelam conhecer desde o tamanho das pedras até ao preço da
cerveja, eu recomendo a obra copiosa e luminosa do meu companheiro de romagem,
o alemão Topsius, doutor pela Universidade de Bonn e membro do Instituto
Imperial de Escavações Históricas. São sete volumes in quarto, atochados,
impressos em Leipzig, com este titulo fino e profundo, Jerusalém Passeada e Comentada.
Em
cada página, desse sólido itinerário, o douto Topsius fala de mim, com
admiração e com saudade. Denomina-me sempre o ilustre fidalgo lusitano; e a
fidalguia do seu camarada, que ele faz remontar aos Barcas, enche
manifestamente o erudito plebeu de delicioso orgulho. Além disso o esclarecido
Topsius aproveita-me, através desses repletos volumes, para pendurar,
ficticiamente, nos meus lábios e no meu crânio, dizeres e juízos ensopados de
beata e babosa credulidade, que ele logo rebate e derroca com sagacidade e
facúndia! Diz, por exemplo: diante de tal ruína, do tempo da Cruzada de
Godofredo, o ilustre fidalgo lusitano pretendia que Nosso Senhor, indo um dia
com a Santa Verónica... E logo alastra a tremenda, túrgida argumentação com que
me deliu. Como, porém, as arengas que me atribui não são inferiores, em sábio
chorume e arrogância teológica, as de Bossuet, eu não denunciei numa nota à
Gazeta de Colónia, por que tortuoso artifício a afiada razão da Germânia se enfeita,
assim, de triunfos, sobre a romba fé do Meio-Dia». In Eça de Queirós, A Relíquia,
1887, Typographia de A. J. da Silva Teixeira, Porto, 1887, Editora Livros do
Brasil, Obras de Eça de Queirós, 2011, ISBN 978-989-711-008-5.
Cortesia
de ELBrasil/JDACT