A Primeira carta
«(…) O Fernando levantou-se, com o
candeeiro na mão, para me acompanhar até à porta. Mas, de repente, pousou-o
sobre a divisória da parede; sem eu esperar agarrou-me pela cintura, abraçou-me
e, sem dizer uma palavra, beijou-me, beijou-me, apaixonadamente, como louco. Surgem
assim os primeiros versos que me dedicou; versos que infelizmente depois me desapareceram,
mas que nunca esqueci:
Fiquei louco, fiquei tonto,
Meus beijos foram sem conto,
Apertei-a contra mim,
Enlacei-a nos meus braços,
Embriaguei-me de abraços,
Piquei louco e foi assim.
Dá-me beijos, dá-me tantos
Que enleado em teus encantos,
Preso nos abraços teus,
Eu não sinta a própria vida
Nem minha alma, ave perdida
No azul-amor dos teus céus.
Boquinha dos meus amores,
Lindinha como as flores,
Minha boneca que tem
Bracinhos para enlaçar-me
E tantos beijos p’ra dar-me
Quantos eu lhe dou também.
Botão de rosa menina,
Carinhosa, pequenina,
Corpinho de tentação.
Vem morar na minha vida,
Dá em ti terna guarida
Ao
meu pobre coração.
Não descanso, não projecto,
Nada certo e sempre inquieto
Quando te não vejo, amor,
Por te beijar e não beijo,
Por não me encher o desejo
Mesmo o meu beijo maior.
Ai que tortura, que fogo,
Se estou perto d’ela é logo
Uma névoa em meu olhar,
Uma nuvem em minha alma,
Perdida de toda a calma,
E eu sem a poder achar.
Fui para casa, comprometida e
confusa. Passaram-se dias e como o Fernando parecia ignorar o que se havia
passado entre nós, resolvi eu escrever-lhe uma carta, pedindo-lhe uma
explicação. É o que dá origem à sua primeira carta-resposta, datada de 1 de
Março de 1920. Assim começámos o namoro.
O namoro
Víamo-nos
todos os dias no escritório, onde, como já disse, o Fernando ia, como correspondente
e amigo. Eram só olhares, recados, bilhetinhos, que me atirava para cima da
secretária, disfarçadamente. E também presentes, que eu encontrava dentro das
gavetas quando chegava de manhã. De entre os bilhetes conservo alguns: Kiss me.
Dê-me um beijinho, sim? Não é nada, Bébé ciumento; logo lhe mostro o que é,
etc., etc.
Talvez
por eu ser muito nova e brincalhona, o Fernando não se convencia que eu pudesse
gostar dele, e mostrava-o, como nestes versos que um dia me mandou:
Os
meus pombinhos voaram.
Elles
pr’a alguém voariam.
Eu
só sei que m’os tiraram;
Não
sei a quem os dariam.
Meus
pombinhos, meus pombinhos,
Que
já não têm os seus ninhos
Ao
pé de mim.
São
assim os meus carinhos
Matam-os
todos assim!
Por
ser muito pequena e magra, embora os braços e as pernas fossem roliços (tinha
uma figura engraçada), e como não me pintava, parecia ainda mais nova do que
era realmente. Eu tinha 19 anos quando conheci o Fernando. Fazíamos, portanto,
uma diferença de 12 anos. Ele achava-me muita graça. Por ternura, tratava-me
por Bébé, Bébé pequenino, Bébézinho e até me fez alguns versos relacionados
exactamente com a minha figura:
O meu
amor é pequeno,
Pequenino
não o acho.
Uma
pulga deu-lhe um coice,
Deitou-o
da cama abaixo.
Ou
estes outros:
Eu
tenho um Bébé Que é.
Quanto
ao tamanho
Assim:
(Bolinha)
Quanto
ao amor que lhe tenho
(uma
linha curva)
Esta
linha dá a volta ao mundo
Ai
de mim!
Um dia,
ainda no escritório Félix e Valladas, levou-me, de presente, uma cadeirinha de
bonecas, de palha encarnada, com um palmo de altura, para eu me sentar. Tinha-a
comprado na Praça da Figueira. A propósito, o Fernando dizia-me: …quando nos
casarmos, tenho que comprar um banquinho, para tu te pores em cima, e quando eu
chegar a casa me dares um beijo. Eu entro, e pergunto: … por acaso não viram
por aí a minha mulher? Então tu apareces, e eu digo: … ah! estavas aí! és tão
pequenina que não te via». In Fernando Pessoa, Cartas de Amor,
Organização de David Mourão Ferreira, preâmbulo de Maria da Graça Queiroz,
Lisboa, Edições Ática, 1978.
Cortesia
de EÁtica/JDACT