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«(…) Fazia frio cá fora
e eu ia passando pelas lojas da Rua Fouad, fortemente iluminadas. Diante de uma
mercearia, vi uma pequena caixa de azeitonas com o nome Orvieto no rótulo, e,
tomado bruscamente pela nostalgia do bom lado do Mediterrâneo, entrei na tenda;
comprei a caixa; pedi que a abrissem, e sentando-me numa mesa de mármore, sob a
lúgubre claridade suja, comecei a devorar a Itália, a sua carne queimada pelo
sol, o seu solo fecundo, as suas vinhas ilustres. Sentia que Melissa nunca
seria capaz de compreender este meu estado de espírito. Seria obrigado a
mentir, dizendo que tinha perdido o dinheiro. Não vi imediatamente o comprido
carro que ela tinha deixado na rua sem parar o motor. Entrou na lojeca com um
ar brusco e decidido e disse, com aquele tom de autoridade que possuem as
lésbicas e que as mulheres ricas usam quando se dirigem a pessoas
manifestamente pobres: que entende por natureza antinómica da ironia?, ou
qualquer coisa desse género, e que não me ocorre agora à memória. Não
conseguindo arrancar-me do meu sonho italiano, ergui a cabeça com ar aborrecido
e vi-a, nos três espelhos que guarneciam três das paredes, debruçar-se para
mim, o rosto sombrio e um pouco assustador, simultaneamente perturbado e cheio
de uma arrogante reserva. Naturalmente eu já tinha esquecido tudo quanto podia
ter dito sobre a natureza da ironia e tudo o mais, e respondi-lhe isso mesmo
com um ar de indiferença que não era totalmente fingido. Ela soltou um ligeiro
suspiro, como para manifestar que a minha resposta a pusera à vontade e
sentou-se acendendo um cigarro, fumava tabaco francês, aspirando pequenas
fumaças que lançava para o espaço em fios azulados que ficavam suspensos na luz
crua da sala. Não sabia que atitude adoptar diante da franqueza com que ela me
olhava e que eu considerava algo embaraçosa, era como se ela estivesse a
avaliar o uso que poderia extrair da minha pessoa. Gostei da maneira como se
referiu aos versos que ele escreveu sobre a cidade, disse ela. Fala bem o
grego. Naturalmente é escritor.
Naturalmente, respondi
eu. É sempre doloroso não se ser conhecido. Parecia inútil prosseguir neste
caminho. Sempre tive horror às conversas literárias. Ofereci-lhe uma azeitona
que ela aceitou; cuspiu o caroço, como um gato, na sua mão enluvada e deixou-o
ficar, como se o tivesse esquecido. Disse, então: Gostaria de apresentá-lo a
Nessim, meu marido. Quer vir? Um polícia tinha aparecido à porta, manifestamente
intrigado com o automóvel abandonado. Foi essa a primeira vez que eu entrei na grande
casa de Nessim com as suas estátuas, as suas palmeiras e os seus nichos, os
seus Courbet, os seus Bonnard e tudo o mais. Era, simultaneamente, magnífico e
medonho. Justine subiu vivamente a escadaria monumental, detendo-se apenas para
transferir o caroço de azeitona do bolso do seu casaco para um vaso da China,
chamando Nessim em todos os tons. Fomos de sala em sala, povoando-as de sons. A
resposta veio do grande estúdio no sótão, e precipitando-se para ele, como um
cão, ela atirou-se, metaforicamente, aos pés do marido, ficando ligeiramente
para trás a abanar alegremente a cauda. Tinha conseguido apanhar-me.
Nessim estava sentado no
último degrau de um escadote e preparava-se para ler, mas começou a descer
lentamente, observando-nos com toda a atenção. A sua timidez não sabia como
reagir diante das minhas roupas modestas, dos meus cabelos encharcados e da
minha caixa de azeitonas, e eu próprio não podia dar-lhe qualquer explicação da
minha presença, visto que ignorava, até, o motivo por que me tinham trazido
ali. Compadeci-me dele e ofereci-lhe uma azeitona; sentámo-nos e acabámos as
azeitonas falando, se bem me lembro, de Orvieto, que nenhum de nós conhecia,
enquanto Justine ia pelos aperitivos. É uma grande consolação para mim recordar
este primeiro encontro. Nunca me senti mais perto deles, quero dizer, mais
perto do casal que eles formavam; pareciam-me, então, esse animal ideal de duas
cabeças que o casamento pode produzir. Vendo a luz quente e benevolente que
brilhava nos olhos de Nessim, compreendi, recordando-me dos escandalosos
rumores que corriam acerca de Justine, que tudo quanto ela pudesse ter feito,
mesmo aquilo que aos olhos do mundo pudesse passar por repreensível ou chocante,
tinha, num certo sentido, sido feito por
amor dele. O amor de Justine por seu marido era como uma pele dentro da
qual ele se encontrava, tal como Hércules em menino; e os esforços que ela
fazia para se realizar não a tinham afastado dele, muito pelo contrário». In
Lawrence
Durrell, Quarteto de Alexandria, 1957, Justine, tradução de Daniel Gonçalves, 1960/1961,
Publicações dom Quixote, Lisboa, 2012, ISBN 978-972-205-110-1.
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