«Um
homem foi bater à porta do rei e disse-lhe, Dá-me um barco. A casa do rei tinha
muitas portas, mas aquela era a das petições. Como o rei passava todo o tempo
sentado à porta dos obséquios (entenda-se, os obséquios que lhe faziam a ele),
de cada vez que ouvia alguém a chamar à porta das petições fingia-se
desentendido, e só quando o ressoar contínuo da aldabra de bronze se tornava,
mas do que notório, escandaloso, tirando o sossego à vizinhança (as pessoas
começavam a murmurar, Que rei temos nós, que não atende), é que dava ordem ao
primeiro-secretário para ir saber o que queria o impetrante, que não havia
maneira de se calar. Então, o primeiro-secretário chamava o segundo-secretário,
este chamava o terceiro, que mandava o primeiro-ajudante, que por sua vez
mandava o segundo, e assim por aí fora até chegar à mulher da limpeza, a qual,
não tendo ninguém em quem mandar, entreabria a porta das petições e perguntava
pela frincha, Que é que tu queres. O suplicante dizia ao que vinha, isto é,
pedia o que tinha de pedir, depois instalava-se a um canto da porta, à espera
de que o requerimento fizesse, de um em um, o caminho contrário, até chegar ao
rei. Ocupado como sempre estava com os obséquios, o rei demorava a resposta, e
já não era pequeno sinal de atenção ao bem-estar e felicidade do seu povo
quando resolvia pedir um parecer fundamentado por escrito ao
primeiro-secretário, o qual, escusado seria dizer, passa a encomenda ao
segundo-secretário, este ao terceiro, sucessivamente, até chegar outra vez à
mulher da limpeza, que despachava sim ou não conforme estivesse a maré. Contudo,
no caso do homem que queria um barco, as coisas não se passaram bem assim.
Quando a mulher da limpeza lhe perguntou pela nesga da porta, Que é que tu
queres, o homem, em lugar de pedir, como era o costume de todos, um título, uma
condecoração, ou simplesmente dinheiro, respondeu, Quero falar ao rei, Já sabes
que o rei não pode vir, está na porta dos obséquios, respondeu a mulher, Pois
então vai lá dizer-lhe que não saio daqui até que ele venha, pessoalmente,
saber o que quero, rematou o homem, e deitou-se ao comprido no limiar,
tapando-se com a manta por causa do frio. Entrar e sair, só por cima dele. Ora,
isto era um enorme problema, se tivermos em consideração que, de acordo com a
pragmática das portas, ali só se podia atender um suplicante de cada vez, donde
resultava que, enquanto houvesse alguém à espera de resposta, nenhuma outra
pessoa se poderia aproximar a fim de expor as suas necessidades ou as sua
ambições. À primeira vista, quem ficava a ganhar com esse artigo do regulamento
era o rei, dado que, sendo menos numerosa a gente que o vinha incomodar com
lamúrias, mais tempo ele passava a ter, e mais descanso, para receber,
contemplar e guardar os obséquios. À segunda vista, porém, o rei perdia, e
muito, porque os protestos públicos, ao notar-se que a resposta estava a tardar
mais do que o justo, faziam aumentar gravemente o descontentamento social, o
que, por seu turno, ia ter imediatas e negativas consequências no afluxo de
obséquios. No caso que estamos narrando, o resultado da ponderação entre os
benefícios e os prejuízos foi ter ido o rei, ao cabo de três dias, e em real
pessoa, à porta das petições, para saber o que queria o intrometido que se
havia negado a encaminhar o requerimento pelas competentes vias burocráticas.
Abre a porta, disse o rei à mulher da limpeza, e ela perguntou, Toda, ou só um
bocadinho. O rei duvidou por um instante, na verdade não gostava muito de se
expor aos ares da rua, mas depois reflexionou que pareceria mal, além de ser
indigno de sua majestade, falar com um súbdito através de uma nesga, como se
tivesse medo dele, mormente estando a assistir ao colóquio a mulher da limpeza,
que logo iria dizer por aí sabe Deus o quê, De par em par, ordenou. O homem que
queria um barco levantou-se do degrau da porta quando começou a ouvir correr os
ferrolhos, enrolou a manta e pôs-se à espera. Estes sinais de que finalmente
alguém viria atender, e que, portanto a praça não tardaria a ficar desocupada,
fizeram aproximar-se da porta uns quantos aspirantes à liberalidade do trono
que por ali andavam, prontos a assaltar o lugar mal ele vagasse. O inopinado
aparecimento do rei (nunca uma tal coisa havia sucedido desde que ele andava de
coroa na cabeça) causou uma surpresa desmedida, não só aos ditos candidatos mas
também à vizinhança que atraída pelo repentino alvoroço, assomara às janelas
das casas, no outro lado da rua. A única pessoa que não se surpreendeu por aí
além foi o homem que tinha vindo pedir um barco. Calculara ele, e acertara na
previsão, que o rei, mesmo que demorasse três dias, haveria de sentir-se
curioso de ver a cara de quem, sem mais nem menos, com notável atrevimento, o
mandar chamar, repartido pois entre a curiosidade que não pudera reprimir e o
desagrado de ver tanta gente junta, o rei, com o pior dos modos, perguntou três
perguntas seguidas, Que é que queres, Por que foi que não disseste logo o que
querias, Pensarás tu que eu não tenho mais nada que fazer, mas o homem só
respondeu à primeira pergunta, Dá-me um barco, disse. O assombro deixou o rei a
tal ponto desconcertado, que a mulher da limpeza se apressou a Contudo, no caso
do homem que queria um barco, as coisas não se passaram bem assim. Quando a
mulher da limpeza lhe perguntou pela nesga da porta, Que é que tu queres, o
homem, em lugar de pedir, como era o costume de todos, um título, uma
condecoração, ou simplesmente dinheiro, respondeu, Quero falar ao rei, Já sabes
que o rei não pode vir, está na porta dos obséquios, respondeu a mulher, Pois
então vai lá dizer-lhe que não saio daqui até que ele venha, pessoalmente,
saber o que quero, rematou o homem, e deitou-se ao comprido no limiar,
tapando-se com a manta por causa do frio. Entrar e sair, só por cima dele. Ora,
isto era um enorme problema, se tivermos em consideração que, de acordo com a
pragmática das portas, ali só se podia atender um suplicante de cada vez, donde
resultava que, enquanto houvesse alguém à espera de resposta, nenhuma outra
pessoa se poderia aproximar a fim de expor as suas necessidades ou as sua
ambições. À primeira vista, quem ficava a ganhar com esse artigo do regulamento
era o rei, dado que, sendo menos numerosa a gente que o vinha incomodar com
lamúrias, mais tempo ele passava a ter, e mais descanso, para receber,
contemplar e guardar os obséquios. À segunda vista, porém, o rei perdia, e
muito, porque os protestos públicos, ao notar-se que a resposta estava a tardar
mais do que o justo, faziam aumentar gravemente o descontentamento social, o
que, por seu turno, ia ter imediatas e negativas consequências no afluxo de
obséquios. No caso que estamos narrando, o resultado da ponderação entre os
benefícios e os prejuízos foi ter ido o rei, ao cabo de três dias, e em real
pessoa, à porta das petições, para saber o que queria o intrometido que se
havia negado a encaminhar o requerimento pelas competentes vias burocráticas.
Abre a porta, disse o rei à mulher da limpeza, e ela perguntou, Toda, ou só um
bocadinho. O rei duvidou por um instante, na verdade não gostava muito de se
expor aos ares da rua, mas depois reflexionou que pareceria mal, além de ser
indigno de sua majestade, falar com um súbdito através de uma nesga, como se
tivesse medo dele, mormente estando a assistir ao colóquio a mulher da limpeza,
que logo iria dizer por aí sabe Deus o quê, De par em par, ordenou. O homem que
queria um barco levantou-se do degrau da porta quando começou a ouvir correr os
ferrolhos, enrolou a manta e pôs-se à espera. Estes sinais de que finalmente
alguém viria atender, e que, portanto a praça não tardaria a ficar desocupada,
fizeram aproximar-se da porta uns quantos aspirantes à liberalidade do trono
que por ali andavam, prontos a assaltar o lugar mal ele vagasse. O inopinado
aparecimento do rei (nunca uma tal coisa havia sucedido desde que ele andava de
coroa na cabeça) causou uma surpresa desmedida, não só aos ditos candidatos mas
também à vizinhança que atraída pelo repentino alvoroço, assomara às janelas
das casas, no outro lado da rua». In José Saramago, O Conto da Ilha
Desconhecida, 1997, Assírio e Alvim, Editorial Caminho, Lisboa, 2010, ISBN 978-972-212-336-5.
Cortesia
de Caminho/JDACT