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Porém, tendo em conta o grau de divulgação, operada por artes maiores e
menores, destas iconografias, só um habitante doutro planeta, supondo que nele
não se houvesse repetido alguma vez, ou mesmo estreado, este drama, só esse em
verdade inimaginável ser ignoraria que a afligida mulher é a viúva de um carpinteiro
chamado José e mãe de numerosos filhos e filhas, embora só um deles, por
imperativos do destino ou de quem o governa, tenha vindo a prosperar, em vida
mediocremente, mas maiormente depois da morte. Reclinada sobre o seu lado
esquerdo, Maria, mãe de Jesus, esse mesmo a quem acabamos de aludir, apoia o
antebraço na coxa de uma outra mulher, também ajoelhada, também Maria de seu
nome, e afinal, apesar de não lhe podermos ver nem fantasiar o decote, talvez
verdadeira Madalena. Tal como a primeira desta trindade de mulheres, mostra os
longos cabelos soltos, caídos pelas costas, mas estes têm todo o ar de serem
louros, se não foi pura casualidade a diferença do traço, mais leve neste caso
e deixando espaços vazios no sentido das madeixas, o que, obviamente, serviu ao
gravador para aclarar o tom geral da cabeleira representada. Com tais razões não
pretendemos afirmar que Maria Madalena tivesse sido, de facto, loura, apenas
nos estamos conformando com a corrente de opinião maioritária que insiste em
ver nas louras, tanto as de natureza como as de tinta, os mais eficazes
instrumentos de pecado e perdição. Tendo sido Maria Madalena, como é geralmente
sabido, tão pecadora mulher, perdida como as que mais o foram, teria também de
ser loura para não desmentir as convicções, em bem e em mal adquiridas, de
metade do género humano. Não é, porém, por parecer esta terceira Maria, em
comparação com a outra, mais clara na tez e no tom do cabelo, que insinuamos e
propomos, contra as arrasadoras evidências de um decote profundo e de um peito
que se exibe, ser ela a Madalena. Outra prova, esta fortíssima, robustece e
afirma a identificação, e vem a ser que a dita mulher, ainda que um pouco amparando, com distraída mão, a
extenuada mãe de Jesus, levanta, sim, para o alto o olhar, e este olhar, que é
de autêntico e arrebatado amor, ascende com tal força que parece levar consigo
o corpo todo, todo o seu ser carnal, como uma irradiante auréola capaz de fazer
empalidecer o halo que já lhe está rodeando a cabeça e reduzindo pensamentos e
emoções. Apenas uma mulher que tivesse amado tanto quanto imaginamos que Maria
Madalena amou poderia olhar desta maneira, com o que, derradeiramente, fica
feita a prova de ser ela esta, só esta, e nenhuma outra, excluída portanto a
que ao lado se encontra, Maria quarta, de pé, meio levantadas as mãos, em
piedosa demonstração, mas de olhar vago, fazendo companhia, neste lado da
gravura, a um homem novo, pouco mais que adolescente, que de modo amaneirado a
perna esquerda flecte, assim, pelo joelho, enquanto a mão direita, aberta,
exibe, numa atitude afectada e teatral, o grupo de mulheres a quem coube
representar, no chão, a acção dramática. Este personagem, tão novinho, com o
seu cabelo aos cachos e o lábio trémulo, é João. Tal como José de Arimateia,
também esconde com o corpo o pé desta outra árvore que, lá em cima, no lugar
dos ninhos, levanta ao ar um segundo homem nu, atado e pregado como o primeiro,
mas este é de cabelos lisos, deixa pender a cabeça para olhar, se ainda pode, o
chão, e a sua cara, magra e esquálida, dá pena, ao contrário do ladrão do outro
lado, que mesmo no transe final, de sofrimento agónico, ainda tem valor para
mostrar-nos um rosto que facilmente imaginamos rubicundo, corria-lhe bem a vida
quando roubava, não obstante a falta que fazem as cores aqui. Magro, de cabelos
lisos, de cabeça caída para a terra que o há-de comer, duas vezes condenado, à
morte e ao inferno, este mísero despojo só pode ser o Mau Ladrão, rectíssimo
homem afinal, a quem sobrou consciência para não fingir acreditar, a coberto de
leis divinas e humanas, que um minuto de arrependimento basta para resgatar uma
vida inteira de maldade ou uma simples hora de fraqueza. Por cima dele, também
chorando e clamando como o sol que em frente está, vemos a lua em figura de
mulher, com uma incongruente argola a enfeitar-lhe a orelha, licença que nenhum
artista ou poeta se terá permitido antes e é duvidoso que se tenha permitido
depois, apesar do exemplo. Este sol e esta lua iluminam por igual a terra, mas
a luz ambiente é circular, sem sombras, por isso pode ser tão nitidamente visto
o que está no horizonte, ao fundo, torres e muralhas, uma ponte levadiça sobre
um fosso onde brilha água, umas empenas góticas, e lá por trás, no testo duma
última colina, as asas paradas de um moinho. Cá mais perto, pela ilusão da
perspectiva, quatro cavaleiros de elmo, lança e armadura fazem voltear as
montadas em alardes de alta escola, mas os seus gestos sugerem que chegaram ao
fim da exibição, estão saudando, por assim dizer, um público invisível. A mesma
impressão de final de festa é dada por aquele soldado de infantaria que já dá
um passo para retirar-se, levando, suspenso da mão direita, o que, a esta
distância, parece um pano, mas que também pode ser manto ou túnica, enquanto
dois outros militares dão sinais de imitação e despeito, se é possível, de tão
longe, decifrar nos minúsculos rostos um sentimento, como de quem jogou e
perdeu». In José Saramago, O Evangelho segundo Jesus Cristo, Editorial Caminho
(o Campo da Palavra), Lisboa, 1991, ISBN 972-210-524-8.
Cortesia
de Caminho/JDACT