sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

O Pêndulo de Foucault Umberto Eco. «… porque o Pêndulo me faria crer que o plano de oscilação cumpriria uma rotação completa, voltando ao ponto de partida, em trinta e duas horas, descrevendo uma elipse achatada, girando a elipse à volta do seu próprio centro com uma velocidade angular uniforme…»

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Keter
«Foi então que vi o Pêndulo. A esfera, móvel na extremidade de um longo fio fixado à abóbada do coro, descrevia suas amplas oscilações em isócrona majestade. Eu sabia, mas quem quer que o tivesse advertido no encanto daquele plácido respiro, que o período era regulado pela relação entre a raiz quadrada do comprimento do fio e aquele número π, que, irracional para as mentes sublunares, por divina razão liga a circunferência ao diâmetro de todos os círculos possíveis, de modo que o tempo daquele errar de uma esfera de um pólo ao outro era feito de uma arcana conspiração entre as mais intemporal das medidas, a unidade do ponto de suspensão, a dualidade de uma dimensão abstracta dimensão, a natureza ternária do π, o tetrágono secreto da raiz, e a perdição do círculo. Sabia também que sobre a vertical do ponto de suspensão, na base, havia um dispositivo magnético, que comunicando a sua atracção a um cilindro oculto no centro da esfera, garantia a constância do movimento, artifício destinado a contrariar as resistências da matéria, mas que não se opunha às leis do Pêndulo, pelo contrário até lhe permitia manifestar-se, porque no vácuo qualquer ponto material pesado, suspenso da extremidade de um fio inextensível e sem peso, que não sofra a resistência do ar e não faça atrito com o seu ponto de apoio, oscilará de maneira regular até à eternidade. A esfera de cobre emanava pálidos reflexos varáveis, batida como estava pelos últimos raios de sol que penetravam pelas vidraças. Se, como outrora, a sua ponta aflorasse uma camada de areia húmida colocada sobre o pavimento do coro, desenharia em cada oscilação um leve sulco no solo, e o sulco, mudando infinitesimalmente de direcção a cada instante, alargar-se-ia cada vez mais em forma de fenda, de vale, deixando entrever uma simetria radiada, tal como um esqueleto de um mandala, a estrutura invisível de um pentaculum, uma estrela, uma mística rosa. Não, antes uma sequência, registada na extensão de um deserto, de sinais deixados por infinitas caravanas errantes. Uma história de lentas e milenárias migrações, talvez assim se tenham deslocado os atlantes do continente de Um, obstinada e possessiva vagabundagem, da Tasmânia à Gronelândia, do Capricórnio ao Câncer, da Ilha do Príncipe Eduardo ao Svalbard. O ponto repetia, narrava de novo um tempo extremamente contraído, o que eles tinham feito de uma glaciação à outra, e talvez ainda fizessem, agora transformados em correios dos Senhores, talvez no percurso entre Samoa e Zembla a ponta aflorasse, na sua posição de equilíbrio, Agarttha, o Centro do Mundo. E eu intuía que um único plano unia Avalon, a hiperbórea, ao deserto austral que alberga o enigma de Ayers Rock. Naquele momento, às quatro da tarde de 23 de Junho, o Pêndulo amortecia a sua velocidade numa extremidade do plano de oscilação, para voltar a cair indolente para o centro, adquirir velocidade a meio do percurso e penetrar confiante no oculto quadrado das forças que marcava o destino.
Se ficasse muito tempo, resistente ao passar das horas, a fixar aquela cabeça de pássaro, aquele bico de lança, aquele elmo virado ao contrário, enquanto desenhava no vácuo as suas diagonais, aflorando os pontos opostos da sua astigmática circunferência, seria vítima de uma ilusão fabulatória, porque o Pêndulo me faria crer que o plano de oscilação cumpriria uma rotação completa, voltando ao ponto de partida, em trinta e duas horas, descrevendo uma elipse achatada, girando a elipse à volta do seu próprio centro com uma velocidade angular uniforme, proporcional ao seno da latitude. Como rodaria se o ponto tivesse sido fixado ao cimo da cúpula do Templo de Salomão? Talvez os Cavaleiros também aí tivessem experimentado. Talvez não tivesse mudado o cálculo, o significado final. Talvez a abadia de Saint Martin des Champs fosse o verdadeiro Templo. Contudo a experiência só seria perfeita no Pólo, o único lugar em que o ponto de suspensão fica no prolongamento do eixo de rotação terrestre, e onde o Pêndulo realizaria o seu ciclo aparente em vinte e quatro horas.
Mas não era este desvio da Lei, que aliás a Lei previa, não era esta violação de uma medula áurea que tornava menos admirável o prodígio. Eu sabia que a Terra estava a girar, e eu com ela. e Saint -Martin des Champs e toda Paris comigo, e juntos girávamos sob o Pêndulo que na realidade nunca alterara a direcção do seu plano, porque lá em cima, donde pendia, e ao longo do infinito prolongamento ideal do fio, de cima na direcção das mais longínquas galáxias, imóvel até à eternidade, estava o Ponto Firme». In Umberto Eco, O Pêndulo de Foucault, 1988, tradução de José Barreiros, Sicidea (Difel), 2008, ISBN 978-846-125-726-3.

Cortesia de Sicidea/Difel/JDACT