quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

O Segredo da Casa de Riverton. Kate Morton. «Como se eu não tivesse já passado toda uma vida fingindo esquecer. Ignorei aquela carta. Dobrei-a cuidadosa e discretamente, meti-a dentro de um livro que há muito desistira de ler»

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Erguem-se fantasmas
«Em Novembro passado tive um pesadelo. Estávamos em 1924 e encontrava-me em Riverton outra vez. Todas as portas estavam abertas de par em par, a seda oscilava com a brisa de Verão. Uma orquestra fora colocada no alto do morro, sob o velho plátano, os violinos entoavam preguiçosamente as suas cadências, envolvidos pelo calor. O ar vibrava com o ruído estridente de risos e cristais e o céu exibia aquele azul que todos pensávamos ter sido irremediavelmente destruído pela guerra. Um dos criados, elegantemente vestido de preto e branco, deitava champanhe no cimo de uma torre de flutes de vidro e todos aplaudiam, deliciados com o magnífico desperdício. Vi-me a mim própria, como é habitual nestes sonhos, movendo-me por entre os convidados. Movendo-me lentamente, muito mais lentamente do que é possível na vida real, os outros reduzidos a uma mancha confusa de seda e lantejoulas. Procurava alguém. Então o cenário mudou e eu estava perto da casa de Verão, só que não era a casa de Verão em Riverton, não podia ser. Este não era o edifício novo em folha que Teddy projectara, mas uma velha estrutura onde a hera trepava as paredes, retorcendo-se pelas janelas, estrangulando os pilares.
Alguém chamava por mim. Uma mulher, uma voz que reconhecia, vinda das traseiras do edifício, na margem do lago. Desci a ladeira, as minhas mãos roçando os juncos mais altos. Um vulto estava agachado na margem. Era Hannah, no seu vestido de noiva, salpicado na frente com lama, que manchava as rosas decorativas. Ela olhou para mim, com o rosto pálido ao emergir da sombra. A sua voz gelou-me o sangue. Vens tarde de mais. Apontou para as minhas mãos, Vens tarde de mais. Olhei para as minhas mãos, mãos juvenis, cobertas com a lama escura do rio, e nelas, o cadáver rígido e frio de um foxhound. Sei o que o provocou, claro. Foi a carta da cineasta. Não recebo muita correspondência hoje em dia: o postal ocasional de um amigo dedicado que se encontra em férias; uma carta rotineira do banco onde tenho uma conta-poupança; um convite para o baptismo de uma criança de cujos pais me apercebo com grande surpresa já não serem eles mesmo crianças. A carta de Ursula chegara numa terça-feira de manhã em finais de Novembro e Sylvia trouxera-a consigo quando veio fazer a minha cama. Franzia as sobrancelhas proeminentes e acenava-me o sobrescrito.
Correio hoje. Algo dos Estados Unidos, a julgar pelo selo. O seu neto, talvez? A sobrancelha esquerda arqueou-se, um ponto de interrogação, e a sua voz baixou até se tornar um murmúrio gutural. Coisa deplorável, aquilo. Simplesmente deplorável. E sendo ele tão bom rapaz. Enquanto Sylvia exprimia a sua desaprovação, agradeci-lhe pela carta. Gosto da Svlvia. Ela é uma das poucas pessoas capazes de ver para lá das rugas no meu rosto a rapariga de vinte anos que habita em mim. Não obstante, recuso deixar-me levar para conversas sobre o Marcus. Pedi-1he que abrisse as cortinas e ela comprimiu os lábios pouco antes de passar a outro dos seus assuntos preferidos: o clima, a probabilidade de nevar no Natal, a devastação que iria causar aos residentes locais que sofrem de artrite. Respondia quando necessário mas só pensava no envelope que tinha no colo, perdida que estava na escrita tortuosa, nos selos estrangeiros, arestas esbatidas que indiciavam grandes atribulações. Porque não deixa que lhe leia isso, perguntou Svlvia, dando às almofadas um último e confiante ajuste, para descansar um pouco os olhos?
Não, obrigada. Mas talvez me pudesse passar os óculos? Quando ela saiu, prometendo voltar e ajudar-me a vestir assim que acabasse a ronda, retirei a carta do sobrescrito, as mãos a tremer como de costume, perguntando-me se ele viria finalmente para casa. Mas a carta não vinha do Marcus. Era de uma jovem que estava a fazer um filme sobre o passado. Queria que eu desse uma olhada nos cenários, para recordar coisas e lugares de antigamente. Como se eu não tivesse já passado toda uma vida fingindo esquecer. Ignorei aquela carta. Dobrei-a cuidadosa e discretamente, meti-a dentro de um livro que há muito desistira de ler. Então suspirei. Não foi a primeira vez que me lembraram do que aconteceu em Riverton, ao Robbie e às irmãs Hartford. Vi uma vez a parte final de um documentário na televisão, algo que a Ruth estava a ver acerca da relação entre alguns poetas e a guerra. Quando o rosto do Robbie encheu o ecrã, o seu nome escrito no fundo com um tipo de letra modesto, senti picadas na pele. Mas não aconteceu nada. A Ruth não se mexeu, o narrador continuou e eu fui enxugar os pratos do jantar. Noutra ocasião, ao ler o jornal, a minha vista foi atraída para um nome familiar num comentário do guia televisivo; um programa que comemorava os 70 anos do cinema britânico. Tomei nota da hora, com o coração aos pulos, perguntando-me se teria coragem de o ver. Acabei por adormecer antes que acabasse. Pouco havia acerca de Emmeline. Algumas fotos publicitárias, nenhuma das quais mostrava a sua verdadeira beleza, e o excerto de um dos seus filmes mudos, The Venus Affair, que a fazia parecer estranha: bochechas ocas; movimentos desajeitados como uma marioneta». In Kate Morton, O Segredo da Casa de Riverton, 2006, tradução de Vítor Guerreiro, Porto Editora, Porto, 2008, ISBN 978-972-004-160-9.


Cortesia de PortoE/JDACT