O Teatro em 1871
«(…) Mas, precisamente,
a circulação das ideias, favorecida pelos novos meios de comunicação, iria permitir
o desenvolvimento e a actualização das letras nacionais, com uma relutância
naturalmente maior no sector do teatro, já que, como notava Zola no prefácio à edição
teatral de Teresa Raquin (e Júlio Lourenço Pinto não se esquecia de o
repetir na sua Estética Naturalista), as revoluções literárias fazem
sentir aí mais lentamente os seus efeitos, pois o público, no seu conjunto,
resiste a mudar de hábitos e os seus juízos têm geralmente a brutalidade de uma
condenação à pena última. De facto, no período que estamos a considerar, a situação
do nosso teatro não destoa sensivelmente do quadro acima descrito: dentro da
mesma linha dos Operários, um ardoroso apóstolo do sindicalismo, o
tipógrafo Silva Albuquerque, estreara no Teatro da rua dos Condes O Operário
e a Associação, comédia-drama em 2 actos dedicada às classes operárias,
para cuja edição (de 1867) Vieira da Silva escreveu um prefácio em que assinala
ao teatro, como pensamento, levantar do abatimento em que um grande ostracismo
de séculos tem deixado as classes trabalhadoras, concorrer para que o nível moral
dessas classes suba alto, fazer com que o sangue espargido em tantas lutas se
torne profícuo para a grande causa por que principalmente tem sido derramado,
pois, sendo ele representação viva das paixões humanas, escola prática dos
costumes, espelho reflector das tendências e da marcha do espírito humano,
melhor do que outro qualquer meio de expressão pode, no meio do prazer e da
distracção, inocular no seio das multidões as ideias e os princípios, neste
caso, a ideia e o princípio do associativismo operário, que a peça de Silva Albuquerque
romanticamente defendia. Em 1869, no Teatro Nacional, com imenso êxito, sobe à
cena A Morgadinha de Valflor, de Pinheiro Chagas, que, sob a exasperação
melodramática dos sentimentos, contava por entre arrebatados acentos de um já
então serôdio ultra-romantismo, e no quadro rural de um século XVIII de convenção,
uma história de amor impossível entre indivíduos de extracção social diferente.
A mesma sujeição à escola romântica, no que ela tinha de mais convencional e
exterior, se depara nos dramas sociais de Costa Cascais (A Lei dos Morgados)
e Gomes Amorim (Aleijões Sociais), ambos de 1870, e (mas neste caso com especial
incidência sobre a componente subjectiva) no drama que o crime passional de
Vieira Castro inspirou a Camilo, O Condenado, que se estreou no Teatro
Nacional em 1871. Veremos adiante como esse tom romantizante perdurou até ao
fim do século (e mesmo para além dele), não só por autores revelados antes do
sobressalto que às letras nacionais trouxe a Questão Coimbrã (Homens e
Feras, de César Lacerda, 1874; O Drama do Povo, de Pinheiro Chagas,
e A Caridade, de Costa Cascais, 1875), o que não deverá surpreender, mas
ainda em autores surgidos posteriormente, de que o caso mais frisante seria o
de Fernando Caldeira (1841-1894), com as suas comédias em verso, de um lirismo
discreto e galante, mas irremediavelmente caduco (O Sapatinho de Cetim,
1876; A Mantilha de Renda, 1880; Madrugada, 1892).
A iniciativa das
Conferências Democráticas, que no dizer de Óscar Lopes visava um largo e
ambicioso, embora vago, plano de reforma da sociedade portuguesa, e a sua
proibição por ordem do ministro do Reino, Marquês de Ávila e Bolama, que
suscitou o indignado protesto de Alexandre Herculano (mas teve o aplauso de
Pinheiro Chagas, uma vez mais ao lado das forças reaccionárias), foram sem
dúvida o acontecimento mais saliente, no plano intelectual e político, do ano
de 1871. Poderá parecer arbitrário ou abusivo, dado que em nenhuma das cinco
conferências que puderam ser proferidas antes da proibição por ofensa clara e
directa às leis do Reino e ao código fundamental da monarquia, na medida em que
atacavam a religião e as instituições políticas do Estado, a questão do teatro
havia sido especificamente abordada, situar nesse ano o começo do presente estudo,
que tem por objecto a dramaturgia realista. Tanto mais que a obra teatral de
maior ressonância que nesse ano se estreou, além de algumas inócuas comédias de
Sousa Bastos, Baptista Machado, Leite Bastos, e de traduções de Sardou, Legouvé
e Feuillet, foi, como de caminho já ficou referido, O Condenado, de
Camilo, cujo exemplar romantismo teve no grande actor José Carlos Santos o
intérprete ideal. A verdade, porém, é que se algum teatro de feição realista se
escreveu e representou em Portugal, e pouco além do naturalismo se terá ido,
mesmo nos melhores casos, a transformação das mentalidades que o tornou
possível ficou a dever-se ao choque provocado pelas Conferências do Casino,
cujas intenções programáticas, assentes no pressuposto de que não pode viver e desenvolver-se
um povo isolado das grandes preocupações intelectuais do seu tempo, aludiam a ligar
Portugal com o movimento moderno, procurar adquirir a consciência dos factos
que nos rodeiam na Europa, agitar na opinião pública as grandes questões da Filosofia
e da Ciência moderna, estudar as condições de transformação política, económica
e religiosa da sociedade portuguesa». In Luiz Rebello, O Teatro Naturalista e
Neo-Romântico (1870-1910, Série Literatura, volume 16, Instituto de Cultura
Portuguesa, Livraria Bertrand, 1978, Centro Virtual Camões, Instituto Camões.
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