Cortesia
de Expresso e jdact
Com
a devida vénia a Valdemar Cruz e ao Semanário Expresso
«Desenhava como ninguém e morreu aos 32 anos
nos braços de Álvaro Siza. O arquiteto assumiu uma viuvez eterna, com as causas
da morte a alimentarem especulações. O Expresso conta pela primeira vez a
história da mulher cuja obra chega agora à Gulbenkian». In texto
de Valdemar Cruz
«No
final daquela madrugada amanhece a eternidade de uma dor indizível. Numa cama,
uma mulher. Um rosto ausente. Um olhar vazio. Na mesma cama, um homem. O
sobressalto do despertar. O olhar perplexo. O alvoroço do inesperado. Ela,
prostrada. Pela face escorre-lhe um débil fio púrpura. Já não é deste mundo.
Ele, petrificado. Já o mundo se lhe desmorona. Ainda lhe pressente um último
suspiro. Tenta agarrar as frágeis réstias de esperança. É tarde. É o fim. São
os gritos abafados. É o adeus absoluto aos sorrisos, às graças, às poses
arrebatadas, aos esmorecimentos, aos dramas do quotidiano, aos dias de criação
febril, aos geniais desenhos de um mundo outro criados por Maria Antónia Siza. Tem 32 anos. Morre às 6h30 da manhã do dia 11
de janeiro de 1973. Álvaro Siza Vieira segura-a naqueles instantes finais. É o
horror. É a desmesura da mágoa. É tarde. É infinitamente tarde. São passados 43
anos desde aquela manhã cravada na memória de quantos tiveram a oportunidade de
conviver com a singular personalidade de Totó, como lhe
chamavam os mais chegados. Há todo um oceano de tempo, de acontecimentos, de
vivências a separar aquele dia final de quem hoje a recorda. Há todo um mundo
de silêncios, de não ditos, ao longo dos anos construídos à volta das
circunstâncias de morte de uma mulher capaz de irromper numa sala como um
furacão. Não deixava ninguém indiferente. Podia, até, ser inconveniente. Podia
criar embaraços. Não podia jamais deixar de ser a personificação de um estranho
sentido de liberdade numa época marcada por medos. Havia em Maria Antónia um invejável lado solar
capaz de contagiar de alegria quem com ela compartilhava vivências. Se estava
bem, desenhava a um ritmo quase febril. Cada desenho nascia de um risco só. De
um único movimento. Sem estudos prévios. Sem rasuras. Com uma rara noção e um
inusitado controlo da imagem. Desenhava contra todas as regras estabelecidas
pela ortodoxia. Desenhava como ninguém. O reverso plasmava-se nos momentos de
ausência. Afundava-se no lado escuro da lua. Uma fronteira difícil de perceber
e acompanhar. Desistia do desenho. Desistia da alegria. Parecia desistir dos
outros. A morte inesperada de uma mulher jovem, a abarrotar de talento,
conhecida pela sua beleza, atormentada por algumas patologias, também do foro
psicológico, na sequência de um trauma pós-parto, depressa se transforma em
campo fértil para o nascimento de um mito urbano ainda hoje não desfeito. Aos
olhos de importantes franjas de amigos e conhecidos, Maria Antónia ter-se-ia suicidado. A pergunta, sussurrada, às vezes
colocada com um misto de timidez e curiosidade própria da devassa, desabava a
cada instante nas múltiplas conversas necessárias à concretização desta viagem
aos percursos e aos mistérios de uma mulher perdida na circunstância de,
afinal, ter nascido antes de tempo. Com 40 anos à data da morte da mulher, Álvaro
Siza assume uma viuvez eterna, nas palavras de um dos grandes amigos
do casal, Carlos Morais, um ex-engenheiro civil do LNEC, agora psicoterapeuta
psicoanalítico com consultório no Chiado, em Lisboa. A força anímica,
afetiva e emocional da Totó era tão grande, que ele a acha irrepetível, revela.
Falar de Maria Antónia torna-se uma
espécie de interdito e Siza projeta a imagem de um homem só, atingido por um
sofrimento indizível. Não por acaso, passam anos desde o primeiro momento em
que lhe sugerimos a ideia deste trabalho, de modo a proporcionar a divulgação
de uma obra no essencial desconhecida. Apesar de ter deixado mais de mil
desenhos e uns tantos quadros a óleo, em vida expôs uma única vez, em 1970, na
Árvore. Em novembro de 2002, um conjunto de acasos proporcionou uma segunda
mostra dos seus desenhos na cooperativa portuense, de seguida apresentados no
Círculo de Belas Artes, em Madrid. Depois, e de novo, o silêncio. Há pelo menos
uma explicação. Se o abordávamos e o tema passava por Maria Antónia, Álvaro Siza não conseguia deixar de expressar o
quanto lhe seria doloroso, bem como para os filhos, regressar a estas
memórias. É prematuro, insistia. Até por ser impossível falar da obra
sem falar da pessoa. Há uns meses algo mudou. Depois de nova abordagem, vai
pela primeira vez um pouco mais longe e adianta terem sido os anos finais de
Totó muito dramáticos. Após o nascimento da filha, Joana, desenvolveu
uma neurose pós-parto, que acontece muitas vezes, mas no caso dela teve uma
evolução má. Tinha períodos de estar muito bem e, depois, entrava numa
depressão grande. Por tudo isso, acrescentava, é muito difícil e pode
ser um choque grande». In Valdemar Cruz, Semanário Expresso, Edição
2245, 7 de Novembro de 2015, Revista E, código para acesso TLKQU, +E, página 24
a 32.
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do Expresso/JDACT