O
Namoro
«(…)
Era duma delicadeza e duma ternura imensa. Quase todos os dias me levava um
presente, que escondia dentro das gavetas da minha secretária, como já contei,
para me fazer surpresa quando eu chegava de manhã. Um dia encontrei uma caixa
de fósforos com dois meiguinhos lá dentro. Meiguinhos eram uns bonequinhos
que apareceram na altura, macho e fêmea, feitos de arame, coberto de fitilho de
seda. Já não os tenho. Outra vez foi uma pulseira de filigrana, que sempre
usei, e que ainda tenho. Duas caixinhas, em filigrana também, douradas, muito
bonitas. E conservo um medalhão em esmalte, com uns gatinhos, que o Fernando me
deu para eu pôr a sua fotografia, coisa que nunca fiz pois a única foto que
tinha dele, e, como se sabe, ele não gostava nada de tirar retratos, era muito
grande, não cabia no medalhão, e eu tive pena de a estragar, recortando. Por
acaso, usei-o sempre com uma fotografia do meu sobrinho Carlos, que ainda hoje
lá está. Como eu era muito gulosa, e ainda sou, e o Fernando sabia-o bem, muito
bem, levava-me de presente, muitas vezes. Rebuçados e bombons. Dentro de uma
caixa de bombons, um dia, encontrei estes versos:
Bombom
é um doce
Eu
ouvi dizer
Não
que isso fosse
Bom
de saber
O
doce enfim
Não
é para mim...
Do
Fernando tenho também um cachimbo. Ele fumava muito. Cachimbo e cigarros. Até
tinha as pontas dos dedos amarelas. Eu ralhava muito com ele e de brincadeira
dizia-lhe: … um dia tiro-te esse cachimbo. E tirei mesmo. Ele achou muita graça,
como de resto achava a tudo o que eu fazia ou dizia, e nunca mo pediu. Ainda o tenho.
Encontrávamo-nos todos os dias, e, quase sempre, mesmo depois de eu ter deixado
o escritório, à porta da Livraria Ingleza, na Rua do Arsenal, onde o Fernando
ia comprar jornais. Além disso, escrevíamo-nos muito. As cartas eram-me
entregues, normalmente, pelo grumete do escritório, o Osório. Foi um namoro
simples, até certo ponto igual ao de toda a gente, embora o Fernando nunca
tivesse querido ir a minha casa, como era habitual da parte de qualquer
namorado. Dizia-me: … sabes, é preciso compreender que isso é de gente vulgar,
e eu não sou vulgar. Eu compreendia-o e aceitava-o exactamente assim, com ele
era. Por exemplo, dizia-me também muitas vezes: … não digas a ninguém que nos
namoramos, é ridículo. Amamo-nos.
Passeávamos
e conversávamos acerca de tudo, das coisas mais simples. De poesia, dos livros que
lia, das suas aspirações, da família. Lembro-me do Fernando me dizer que era sidonista.
Fez um dia uns versos a Sidónio Pais, que me ofereceu, mas que, infelizmente, desapareceram,
assim como os manuscritos de alguns outros versos que aqui recordo. Ele era também
conhecido como monárquico; mas dizia-me. Eu não sou monárquico, sou talassa.
Não posso passar à porta da Brasileira porque sou agredido. Passo do lado de
lá, se não apanho uma bengalada. O Fernando adorava-me, e tinha uns
repentes de paixão que me assustavam, mas que ao mesmo tempo me divertiam. Por
exemplo, um dia, no escritório, o primo tinha saído, e ele entrou no meu
gabinete. Sem dizer uma palavra pegou-me ao colo, levou-me para a outra sala,
sentou-me numa cadeira e ajoelhou-se a meus pés dizendo as maiores ternuras. Outra
vez, num destes seus ataques repentinos, estávamos nós na paragem do eléctrico
na Rua de S. Bento, empurrou-me para o vão de uma escada. Não percebi o que
era; até pensei que fosse ele que, pela sua timidez, tivesse visto alguém e não
quisesse que nos vissem juntos. Mas, sem eu esperar, agarrou-me com toda a
força e beijou-me: um beijo enorme, enorme.
Ou,
então, acontecia estarmos muito bem a conversar, e de repente ele dizer-me uma coisa
que não vinha nada a propósito, como, por exemplo, chamar-me ácido sulfúrico,
mas isto dito com a maior paixão. Entre Março e Abril desse ano, deixei o
escritório Félix e Valladas, e fui para a casa C. Dupin no Cais do Sodré. O
Fernando acompanhava-me todos os dias, daí para casa de minha irmã, no Rossio.
Os meus pais viviam na Rua dos Poiais de S. Bento, esquina para a Rua Caetano
Palha, mas eu passava parte do tempo em casa desta minha irmã de quem fazia uma
diferença de vinte anos. Ela tratava-me como filha, adorava-me, e como só tinha
um filho único, o meu sobrinho Carlos Queiroz, gostava imenso da minha
companhia. Eu, claro, era muito nova, muito alegre e, portanto, preferia estar
em casa dela. A minha mãe, coitada, passavam-se dias sem me ver, até que, cheia
de saudadas, me mandava para casa. Nessas alturas, então, o Fernando e eu
combinávamos uma hora para eu estar à janela e ele passar, para assim nos vermos.
O meu pai nem sonhava que nós nos namorávamos. Eu ia para a janela e, à
hora combinada, ele aparecia. Passava no passeio da frente, muito discretamente,
como aliás procedia em tudo, e disfarçadamente fazia-me caretas e atirava-me
beijos. Depois, ia pela rua abaixo (parece impossível um homem destes...,
subindo e descendo os degraus de todas as portas aos pulinhos, só para eu achar
graça. Na 2ª feira então, quando nos encontrávamos, comentávamos a cena e
ríamos muito.
O
Fernando, em geral, era muito alegre. Ria como uma criança, e achava muita
graça às coisas. Dizia, por exemplo, ouvistaste? Em vez de ouviste. Quando saía para ir engraxar os
sapatos, dizia-me: … eu já venho vou lavar os pés por fora. Um dia mandou-me um
bilhetinho assim: … o meu amor é pequenino, tem calcinhas cor-de-rosa. Eu li
aquilo, e fiquei indignada. Quando saímos, disse-lhe zangada: … ó Fernando,
como é que você sabe, se eu tenho calcinhas cor-de-rosa ou não, você nunca
viu... (tanto nos tratávamos por tu, como por você). E ele respondeu-me a rir: …
não te zangues Bébé, é que todas as Bébés pequeninas têm calcinhas
cor-de-rosa... Pouco tempo depois, mudei outra vez de emprego. Fui então para
Belém, para uma companhia de material de aviação, como tradutora. O Fernando ia
buscar-me todos os dias; conversávamos, portanto, durante o trajecto do carro
eléctrico. Nesta altura, andava ele muito preocupado e ocupado com a mudança da
casa de Benfica, para a Estrela, na Rua Coelho da Rocha. A mãe que vivia no Transvaal
com as irmãs, tinha-o encarregado de arranjar casa, e foi ele sozinho que teve
que tratar de tudo». In Fernando Pessoa, Cartas de Amor,
Organização de David Mourão Ferreira, preâmbulo de Maria da Graça Queiroz,
Lisboa, Edições Ática, 1978.
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de EÁtica/JDACT