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«(…) Marina, cinquenta, reza suas manhãs de matinas
domésticas, hábito verbal sem fala, agora e na hora do trescuro passo livra-me
do mal, faz que o fogo de ontem nossos campos salve. Não será para mim ver a
luz do dia, antes de fechar estes que a terra irá tragar. Senhor fero do meu
inferno de trazer por casa, que um gesto me afaste dos olhos as chamas que
clamam vingança, os donos das trevas me puxam cabelos e me pisam pernas, me
esmagam o ventre que não presta mais nem para procriar. Se não me levanto e me
livro disto, como era a cantiga? As pedras da fonte são cor de trovisco, todo o
meu intento foi amar Francisco. Valeu bem a pena. Para ele, Francisco, ignoro
se sou gente. Cuidadora e criadora dos seus filhos, serei manta de retalhos,
injuntáveis bocados, jogo cujo jogador ficou fatigado, e me deixou rota
desmembrada ao canto do quarto onde acordo irada com quê, contra quem?
Diziam-me dantes: o filho lava a mãe. Pesam-me meus filhos, sinto-me Saturno
devorando-os, mareada ao cheiro do marido, do muito que fuma à noite lá por
fora com o padre, o juiz, o notário, o lavrador advogado, o médico, o veterinário,
licenciados vários que tiram cursos para jogarem às cartas, ninguém lhes exige
prova dos títulos, andaram por Lisboa uns quantos anos, regressaram dizendo-se
formados, tanto dá, ficam o resto da vida aqui entre estreitas paredes
fechadas, falta de ar. Marina acha-se apertada, ergue-se apressada, veste o
robe, vai ao quarto dos mais novos, Jó e Tiago juntos têm menos anos que André,
quase morgado, primogénito, dormindo no quarto ao lado sem João Carlos, partido
de casa. Partida que senti como traição contra mim, semelhante à que julgo ver nos
mais pequenos, fingindo dormir para se afastarem da minha influência, todos me
escapam, tudo me passa areia entre dedos, fruta do tempo diria Estela, criada
de dentro cujos filhos dela se não distanciam porque ela deles se distanciou,
vindo servir para longe. Ricos, pobres, pais hoje são vis avejões, aves embalsamadas
pelas próprias crias que as põem de lado, esfregões de chão, móveis do lar cada
vez mais alheio para Marina, dona de casa por ironia, tudo e ela do marido.
Olha em volta, decaído bem-estar, a cal, tombando em muitos sítios, forma
placas petrificadas de velhice, como se só pó amassado sustentasse as traves
empenadas, empenas comidas pelo bicho, fim do casarão que será grande demais
quando todos crescerem, partirem, filhos que foram barreira entre o que quis
que a vida fosse e o que foi». In Almeida Faria, Cortes, Editorial Caminho,
o Campo da Palavra, Lisboa, 1986.
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