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Nesse dia, porém, a hospedaria estava quase vazia. Nada se movia por entre as
sombras da noite. Nada, excepto um homem de aspecto rude. Esperara, ansioso,
escondido, que todos se retirassem para jantar, os monges para o refeitório e
os servos para os seus pardieiros. Só então saíra das estrebarias e se enfiara
na hospedaria, deslizando, na semiobscuridade, até ao quarto que fora destinado
ao mercador de Toledo. Encostou o ouvido ao batente para se assegurar de que
não havia ninguém lá dentro e só depois entrou furtivamente. Informara-se e
sabia que os hóspedes tinham sido convidados para jantar no refeitório, na mesa
do abade. Caminhava, curvado, e os sapatos faziam ranger o soalho à sua
passagem. Olhou em redor com um olhar ameaçador, as pupilas brilhando no
escuro. O mobiliário era espartano: dois catres, uma escrivaninha e uma mesita
sobre a qual fora colocada uma candeia. Mas onde diabo teriam posto o baú?
Devia estar pejado de moedas de prata ou até de preciosidades. Onde estaria?
Hulco procurou com todo o cuidado, sem desarrumar nada. Mas fora inútil, não
estava. E, no entanto, ele tinha de estar ali! Malditos peregrinos!, imprecou,
continuando a revistar na sombra.
Depois
do jantar, o mercador sentou-se à mesa do seu quarto. Acendeu a candeia e tirou
do bornal uma folha de papel árabe. Pegou numa pena de pato, molhou-a no
tinteiro e começou a escrever. Willalme, por sua vez, aninhou-se logo no seu
catre. Dormira durante anos no porão oscilante de um navio, razão pela qual,
apesar do cansaço, levou algum tempo a adormecer. No dia seguinte tinha de
tratar do importante assunto de que Ignazio o encarregara. O mercador, pelo
contrário, terminada a escrita, tirou do baú um volumoso códice, aproximou a
candeia das páginas de pergaminho e mergulhou na leitura. Permaneceu na mesma
posição durante umas duas horas, envolto na penumbra. Quando a visão começou a
fraquejar, fechou o códice e pousou-o sobre o baú. Pegou na carta, dobrou-a e
meteu-a no envelope, depois apagou a candeia e, no escuro, tacteou o catre. Antes
de se deitar olhou para a janela, da qual se vislumbrava o perfil do mosteiro.
Afastou um mau presságio e aninhou-se sem adormecer. Pensava em Maynulfo de
Silvacandida: a testa alta, o cabelo e a barba branquíssimos, o olhar calmo e
os olhos celestes. A notícia da sua morte apanhara-o de surpresa. Embora idoso,
Maynulfo sempre se distinguira por ser um homem de fibra. Seria possível que o
rigor do Inverno o tivesse atacado a esse ponto? O mercador virou-se
nervosamente entre os cobertores. Pobre Maynulfo, durante anos fora o único
guardião do seu segredo. Perguntou-se se não o teria revelado a alguém. A
Rainerio, por exemplo. Era uma hipótese verosímil. Era necessário encontrar o
novo abade e falar-lhe em privado, perceber se fora posto ao corrente de alguma
coisa. De resto, o tempo de que dispunha era tão pouco...
Voltou
a pensar na tarefa que tinha de cumprir, razão pela qual o conde o mandara vir da
Terra Santa com tanta urgência. Tinha de partir à descoberta de um livro que
continha a chave para mistérios inimagináveis, muito para além dos
conhecimentos de qualquer filósofo ou alquimista. Em breve iria receber
instruções de Veneza. Entrelaçou os dedos por detrás da nuca e fitou as traves
do tecto, semelhantes a costelas de um enorme esqueleto. Antes de ceder ao sono,
reflectiu sobre um pormenor que notara depois do jantar, enquanto se retirava com
Willalme: à sombra da hospedaria entrevira Hulco e Ginesio, que confabulavam,
desenhando, por gestos, um objecto retangular e de grande capacidade. Perguntou
a si próprio se o comportamento dos dois servos não deveria ser analisado com mais
atenção. Hulco e Ginesio interrogavam-se sobre o conteúdo do seu baú, disso não
tinha dúvida, e um deles teria seguramente entrado no quarto para o procurar. O
cansaço tomou a dianteira, os pensamentos começaram a escassear e perderam
lucidez e coerência. E do sono, cheio de recordações e de velhos medos, emergiu
o delírio. Foi então que Ignazio ouviu um barulho, um arrastar de qualquer coisa,
como se alguém se movesse aos pés da sua cama. Depois viu duas mãos pairarem sobre
os cobertores, puxando--as. Tomado pela surpresa, arregalou os olhos e
observou-as, impotente. Sentia os membros pesados e insensíveis como os de um fantoche.
E enquanto as mãos avançavam pelos cobertores, qualquer coisa saía do catre. Era
como se uma sombra se tivesse desprendido da noite e lhe premisse o peito. Depois
a sombra transformava-se numa capa negra, e aquelas mãos, aqueles pulsos branquíssimos
que saíam das mangas, empunhavam um punhal cruciforme, e do capuz emergia um rosto.
Não, não era um rosto, mas a Máscara Vermelha. O mercador sobressaltou-se.
Conhecia muito bem aquela máscara». In Marcello Simoni, O Mercador de Livros
Malditos, 2011, tradução de Maria Irene Carvalho, Clube do Autor, Lisboa, 2012,
ISBN 978-989-224-029-4.
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