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Práticas de caridade e assistência nos alvores da Modernidade.
Contextos sociais e políticos
«(…) Em Portugal, a questão dos ciganos começou
por não se individualizar do problema dos falsos mendigos e dos vagabundos em
geral. O primeiro alvará conhecido que os refere, de 13 de Março de 1526,
proibia a sua entrada no reino e ordenava a saída dos que cá viviam, usando o argumento
da necessidade de proteger a ordem pública; mas apenas a referência às muitas
feitiçarias que fingem saber em que o povo recebe muita perda e fadiga sobressaía
das queixas recebidas pelo rei contra os demais andante. A lei seguinte, de 1538,
ao especificar que as suas determinações visavam, além dos falsos mendigos, outras
pessoas de qualquer nação que andassem ou vivessem como ciganos, introduzia um elemento
novo, já que o legislador reconhecia o nomadismo como um tipo de vida característico
desta etnia; doravante, todos os diplomas que condenavam a vadiagem particularizavam
igualmente os que vivessem como ciganos, argumento que em 8 de Agosto de 1639 o
regedor da Casa da Suplicação clarificava ao afirmar que o ser cigano não consiste
na natureza [naturalidade] mas em viver como tal. Sem um rumo político definido
em relação a este grupo, ainda que a tendência fosse para o agravamento do quadro
penal, se é verdade que a Coroa geriu a questão dos ciganos conforme os seus próprios
interesses e condicionalismos conjunturais, não é menos verdade que por várias vezes
decidiu a seu favor, contrariando os municípios que os recusavam nos seus
territórios e procurando integrá-los, em condições idênticas às exigidas a qualquer
minoria, fixação num determinado local, obrigação de trabalharem e de abandonarem
os traços identificadores da sua pertença étnica, imposições sempre rejeitadas.
A este propósito distingue-se a Lei sobre
ciganos e vagabundos de 1649, determinando a entrega das crianças ciganas
às misericórdias, recolhimentos e colégios de órfãos, quando atingissem os nove
anos, para os educarem para o mundo do trabalho, incutindo-lhes os valores básicos
do cristianismo, afinal os mesmos pressupostos que presidiam às políticas
relativas às crianças abandonadas e aos órfãos. Pela primeira vez, a lei tomava
a pedagogia como uma forma de repressão em relação aos ciganos, mas como antes,
sem qualquer sucesso, pois a sua memória social mostrava-se suficientemente sedimentada
para resistir aos valores que lhes queriam incutir, nomeadamente o do trabalho
como garante do desenvolvimento económico, estabilidade social e condição de acesso
aos mecanismos formais de assistência.
Nenhuma destas políticas contra os mendigos sem
licença, vagabundos, ociosos e embusteiros, ciganos ou não, punha em causa, todavia,
os princípios religiosos que, por esta altura, sustentavam o exercício da
caridade: a Bíblia e a patrística continuavam a dar substância aos textos
oficiais e literários, como a obra vicentina bem retrata, e a ideologia da
Igreja, que era também uma prática, espelhava-se em livros como o Leal Conselheiro, do rei Duarte I,
ou no Livro da Virtuosa Benfeitoria,
do infante Pedro. A generalidade dos autores combinava, sem se contradizer, dois
tópicos fundamentais: o da pobreza evangélica, doutrinalmente enquadrada, e o da
condenação da ociosidade, defendendo a honestidade e o trabalho. O que se pretende
salientar é que as medidas contra a mendicidade podem igualmente incluir-se no conjunto
das acções régias que definiam o modelo do bom rei». In Laurinda Abreu, O Poder e os
Pobres, As Dinâmicas Políticas e Sociais da Pobreza e da Assistência em
Portugal, Séculos XVI-XVIII, Gradiva, Lisboa, 2014, ISBN 978-989-616-596-3.
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