sábado, 30 de janeiro de 2016

O Poder e os Pobres. Laurinda Abreu. «… em 8 de Agosto de 1639 o regedor da Casa da Suplicação clarificava ao afirmar que o ser cigano não consiste na natureza [naturalidade] mas em viver como tal»

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Práticas de caridade e assistência nos alvores da Modernidade. Contextos sociais e políticos
«(…) Em Portugal, a questão dos ciganos começou por não se individualizar do problema dos falsos mendigos e dos vagabundos em geral. O primeiro alvará conhecido que os refere, de 13 de Março de 1526, proibia a sua entrada no reino e ordenava a saída dos que cá viviam, usando o argumento da necessidade de proteger a ordem pública; mas apenas a referência às muitas feitiçarias que fingem saber em que o povo recebe muita perda e fadiga sobressaía das queixas recebidas pelo rei contra os demais andante. A lei seguinte, de 1538, ao especificar que as suas determinações visavam, além dos falsos mendigos, outras pessoas de qualquer nação que andassem ou vivessem como ciganos, introduzia um elemento novo, já que o legislador reconhecia o nomadismo como um tipo de vida característico desta etnia; doravante, todos os diplomas que condenavam a vadiagem particularizavam igualmente os que vivessem como ciganos, argumento que em 8 de Agosto de 1639 o regedor da Casa da Suplicação clarificava ao afirmar que o ser cigano não consiste na natureza [naturalidade] mas em viver como tal. Sem um rumo político definido em relação a este grupo, ainda que a tendência fosse para o agravamento do quadro penal, se é verdade que a Coroa geriu a questão dos ciganos conforme os seus próprios interesses e condicionalismos conjunturais, não é menos verdade que por várias vezes decidiu a seu favor, contrariando os municípios que os recusavam nos seus territórios e procurando integrá-los, em condições idênticas às exigidas a qualquer minoria, fixação num determinado local, obrigação de trabalharem e de abandonarem os traços identificadores da sua pertença étnica, imposições sempre rejeitadas. A este propósito distingue-se a Lei sobre ciganos e vagabundos de 1649, determinando a entrega das crianças ciganas às misericórdias, recolhimentos e colégios de órfãos, quando atingissem os nove anos, para os educarem para o mundo do trabalho, incutindo-lhes os valores básicos do cristianismo, afinal os mesmos pressupostos que presidiam às políticas relativas às crianças abandonadas e aos órfãos. Pela primeira vez, a lei tomava a pedagogia como uma forma de repressão em relação aos ciganos, mas como antes, sem qualquer sucesso, pois a sua memória social mostrava-se suficientemente sedimentada para resistir aos valores que lhes queriam incutir, nomeadamente o do trabalho como garante do desenvolvimento económico, estabilidade social e condição de acesso aos mecanismos formais de assistência.
Nenhuma destas políticas contra os mendigos sem licença, vagabundos, ociosos e embusteiros, ciganos ou não, punha em causa, todavia, os princípios religiosos que, por esta altura, sustentavam o exercício da caridade: a Bíblia e a patrística continuavam a dar substância aos textos oficiais e literários, como a obra vicentina bem retrata, e a ideologia da Igreja, que era também uma prática, espelhava-se em livros como o Leal Conselheiro, do rei Duarte I, ou no Livro da Virtuosa Benfeitoria, do infante Pedro. A generalidade dos autores combinava, sem se contradizer, dois tópicos fundamentais: o da pobreza evangélica, doutrinalmente enquadrada, e o da condenação da ociosidade, defendendo a honestidade e o trabalho. O que se pretende salientar é que as medidas contra a mendicidade podem igualmente incluir-se no conjunto das acções régias que definiam o modelo do bom rei». In Laurinda Abreu, O Poder e os Pobres, As Dinâmicas Políticas e Sociais da Pobreza e da Assistência em Portugal, Séculos XVI-XVIII, Gradiva, Lisboa, 2014, ISBN 978-989-616-596-3.
           
Cortesia de Gradiva/JDACT