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De
Portugal para S. Tomé e Príncipe por ordem d’el-rei João II em 1493
«(…) Depois das fúrias dançantes
das chamas e dos seus cantos terem dado lugar ao silêncio, o ar gélido
apoderou-se do meu corpo e o vazio acomodou-se no meu peito. O meu corpo
começou a balançar de trás para a frente e de frente para trás sem, no entanto,
se mexer. Era o desamparo e a solidão que tinham rompido todos os limites e o
meu corpo procurava, instintivamente, um novo consolo, aquele movimento conduzia-me
em busca disso. Não sei quanto tempo fiquei assim, até me levantar como uma folha
seca ao sabor do vento e completamente mergulhado nas trevas. Um espírito estilhaçado
e confuso, separado de um corpo levitante. Abandonada a guarnição para as minhas
costas, fiquei flanqueado pelos sentimentos de perda. Os meus pés descalços
ignoraram os picos das carumas, enquanto os cenários iam mudando e as horas
passavam como as brisas que acariciavam o meu rosto, num evidente esforço para
me devolver a lucidez. Os únicos sinais que recebia eram os sinos das igrejas
ecoando das aldeias vizinhas, por onde passava, a chamar os fiéis para as
orações. Banaboia! O cheiro acre penetrante e esfumado fazia questão de, mesmo
sem norte, passear comigo para todo o lado, mesmo quando fui convidado pelo
cantarolar uníssono das águas que caíam. Encostado numa rocha molhada, senti um
leve arrepio e dei comigo com uma lâmina curva encostada ao pescoço. Era um
comparsa que se esforçava para ter o papel principal numa cena, por si só,
macabra. Não te mexas, quem és tu? Como é que descobriste este sítio?
Aquela água corrente e cristalina
chamava desesperadamente por aquela criatura para o aliviar daquele fardo
nauseabundo, cujo fedor conseguiu desencrostar das minhas narinas o seu fiel
hóspede. A sua cabeça povoada pelas pequenas ilhas de longos cabelos, decorados
com lêndeas; a face brumada exibia uma boca ainda mais nauseabunda que badalara
bem diante do meu nariz, onde os dentes mais não eram do que uma mina de carvão.
Depois de se assegurar que eu estava sozinho, revistou-me de ponta a ponta para
ver se levava comigo alguma coisa susceptível de ser subtraída. Certamente
ficou frustrado, ao descobrir quão liso eu estava. Ainda assim, deixou-me os
seus conselhos: vê la por onde andas. Nem toda gente é assim tão gentil como eu.
(...) nem toda gente é assim tão gentil como eu! Pensei... Ao longe, uma casa cujas
características exteriores eram em tudo semelhantes àquela que eu vi ser consumida
pelas chamas, aquela que sempre fora o meu abrigo. Subitamente, fiquei paralisado
a olhar para ela, como que à espera de uma rahamin
(compaixão divina). Na altura, o acontecimento para mim não teve qualquer significado,
mas hoje acredito que fui orientado pelo Ein
Sof (o Deus oculto que não pode ser apreendido, descrito ou abordado) a abrir
aquela cancela de recortes de ferro que dava acesso ao pátio, completamente cercado
de ardósia. Mecanicamente, simulando uma rotina invejável, dirigi-me directamente
ao alpendre aparentemente deserto, nas traseiras da casa. A porta da cozinha
estava escancarada com a fogueira adormecida e mais não restavam que borralhos.
Mesmo ao lado, jaziam duas taças e, entre elas, uma matza (pão ázimo que leva farinha e água como os únicos
ingredientes) partida. Foi o consumar, de forma grosseira, da violação de um espaço
alheio. O avolumar do silêncio não me ensurdeceu; não empecilhei na ausência de
vivalma; só parei no interior daquela cozinha». In Orlando Piedade, Os Meninos
Judeus Desterrados, De Portugal para S. Tomé e Príncipe por
ordem d’el-rei João II em 1493, Edições Colibri, 2014, ISBN 978-989-689-450-4.
Cortesia de Colibri/JDACT