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Pregado
na Capela Real, no ano de 1655. Semen est verbum Dei. S. Lucas, VIII
I
«(…)
Agora torna a minha pergunta: e que faria neste caso, ou que devia fazer o
semeador evangélico, vendo tão mal logrados seus primeiros trabalhos? Deixaria
a lavoura? Desistiria da sementeira? Ficar-se-ia ocioso no campo, só porque
tinha lá ido? Parece que não. Mas se tornasse muito depressa a buscar alguns
instrumentos com que alimpar a terra das pedras e dos espinhos, seria isto
desistir? Seria isto tornar atrás? Não por certo. No mesmo texto de
Ezequiel com que arguistes, temos a prova. Já vimos como dizia o texto, que
aqueles animais da carroça de Deus, quando iam não tornavam: nec revertebantur,
cum ambularent. Lede agora dois versos mais abaixo, e vereis que diz o mesmo
texto que aqueles animais tornavam, e semelhança de um raio ou corisco: ibant
et revertebantur in similitudinem fulgoris coruscantis. Pois se os animais iam
e tornavam à semelhança de um raio, como diz o texto que quando iam não
tornavam? Porque quem vai e volta como um raio, não torna. Ir e voltar como
raio, não é tornar, é ir por diante. Assim o fez o semeador do nosso Evangelho.
Não o desanimou nem a primeira nem a segunda nem a terceira perda; continuou
por diante no semear, e foi com tanta felicidade, que nesta quarta e última
parte do trigo se restauraram com vantagem as perdas do demais: nasceu,
cresceu, espigou, amadureceu, colheu-se, mediu-se, achou-se que por um grão
multiplicara cento: et fecit fructum centuplum. Oh que grandes esperanças me dá
esta sementeira! Oh que grande exemplo me dá este semeador! Dá-me grandes esperanças
a sementeira porque, ainda que se perderam os primeiros trabalhos, lograr-se-ão
os últimos. Dá-me grande exemplo o semeador, porque, depois de perder a
primeira, a segunda e a terceira parte do trigo, aproveitou a quarta e última,
e colheu dela muito fruto. Já que se perderam as três partes da vida, já que
uma parte da idade a levaram os espinhos, já que outra parte a levaram as
pedras, já que outra parte a levaram os caminhos, e tantos caminhos, esta
quarta e última parte, este último quartel da vida, porque se perderá também?
Porque não dará fruto? Porque não terão também os anos o que tem o ano? O ano
tem tempo para as flores e tempo para os frutos. Porque não terá também o seu
Outono a vida? As flores, umas caem, outras secam, outras murcham, outras leva
o vento; aquelas poucas que se pegam ao tronco e se convertem em fruto, só
essas são as venturosas, só essas são as que aproveitam, só essas são as que
sustentam o Mundo.
Será
bem que o Mundo morra à fome? Será bem que os últimos dias se passem em flores?
Não será bem, nem Deus quer que seja, nem há-de ser. Eis aqui porque eu
dizia ao princípio, que vindes enganados com o pregador. Mas para que
possais ir desenganados com o sermão, tratarei nele uma matéria de grande peso
e importância. Servirá como de prólogo aos sermões que vos hei-de pregar, e aos
mais que ouvirdes esta Quaresma.
II
Semen
est verbum Dei.
O
trigo que semeou o pregador evangélico, diz Cristo que é a palavra de Deus. Os
espinhos, as pedras, o caminho e a terra boa em que o trigo caiu, são os
diversos corações dos homens. Os espinhos são os corações embaraçados com
cuidados, com riquezas, com delícias; e nestes afoga-se a palavra de Deus. As
pedras são os corações duros e obstinados; e nestes seca-se a palavra de Deus,
e se nasce, não cria raízes. Os caminhos são os corações inquietos e
perturbados com a passagem e tropel das coisas do Mundo, umas que vão, outras
que vêm, outras que atravessam, e todas passam; e nestes é pisada a palavra de
Deus, porque a desatendem ou a desprezam. Finalmente, a terra boa são os
corações bons ou os homens de bom coração; e nestes prende e frutifica a
palavra divina, com tanta fecundidade e abundância, que se colhe cento por um: et
fructum fecit centuplum. Este grande frutificar da palavra de Deus é o em que
reparo hoje; e é uma dúvida ou admiração que me traz suspenso e confuso, depois
que subo ao púlpito. Se a palavra de Deus é tão eficaz e tão poderosa, como
vemos tão pouco fruto da palavra de Deus? Diz Cristo que a palavra de Deus
frutifica cento por um, e já eu me contentara com que frutificasse um por cento.
Se com cada cem sermões se convertera e emendara um homem, já o Mundo fora
santo. Este argumento de fé, fundado na autoridade de Cristo, se aperta ainda
mais na experiência, comparando os tempos passados com os presentes». In
Sermões, padre António Vieira, 1655, Sermões Escolhidos. v.2, São Paulo,
Edameris, 1965, Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro, Universidade de São
Paulo, Universidade de Santa Catarina, Wikipédia.
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