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Maio
de 1517 a Junho de 1522
Primeiro de Maio
«Mais
tarde, recordaria sempre esta noite como aquela em que vira morrer dois homens,
um em paz, o outro aterrorizado. Agora, porém, que tinha sete anos e estava perdida,
a única coisa que Honor Larke sabia era que não estava sozinha nesta noite enlouquecida
do primeiro de Maio. Refugiando-se nas sombras da entrada de uma taberna, rezou
para que os assaltantes não a vissem. Estavam a saquear uma casa do outro lado da
rua, a luz das tochas iluminando-lhes os movimentos, e Honor teve a impressão de
que uma série de demónios de uma peça de teatro tinha saído do palco em bando e
que o inferno ardia na frente dela. Estava cercada. Não podia regressar a Cheapside,
onde os aprendizes de Londres causavam distúrbios. As festividades anuais tinham
degenerado em violência contra os estrangeiros abastados, em especial os italianos,
a que chamavam lombardos, e Honor ainda sentia o peito dorido de ter tido de abrir
caminho por entre a turba de Cheapside, que lançava pedras a uma joalharia, enquanto
as mulheres que se encontravam no interior da loja gritavam numa língua desconhecida.
Mas também não podia seguir em frente, porque muitos ladrões, aproveitando-se
do caos que reinava naquela noite, se tinham juntado aos aprendizes que percorriam
esta ruela. Os homens largavam objectos das janelas da casa do mercador, uma casa
de três andares, que ficava do outro lado da rua, e os cúmplices que estavam na
rua apanhavam-nos. As peças de seda caíam lá do alto em vagas de carmesim e cor
de jade; os baús de madeira iam esmagar-se contra as pedras da calçada, fazendo
espalhar documentos e moedas, e uma dúzia de ladrões apanhava os despojos para dentro
de sacos. Um deles, um velhote desdentado que estava acocorado a meio da rua,
cantarolava por entredentes enquanto recolhia colheres de prata veneziana. Diante
de Honor passou um ladrão com uma tocha em punho, e ela engasgou-se com o fumo acre
provocado pelos farrapos mergulhados em alcatrão, tapando a boca com a mão para
abafar o som que produzira. Will, apanha aí, chamou um homem de uma janela, atirando
um cofre decorado a granadas. Tem cuidado, que isso vai render que chegue para comprar
uma prostituta de bispo. No andar acima do dele, uma voz grasnou: encontrei,
encontrei!
Os
grupos de homens ergueram a cabeça. Sob uma empena, um jovem e robusto aprendiz
apareceu a uma portada semidestruída. Encontrei um lombardo!, berrou cá para fora.
Estava a escrevinhar à secretária! E, tirando uma pena do cabelo emaranhado,
acenou com ela qual troféu. Depois voltou para dentro e, por momentos, o espaço
da janela ficou deserto, iluminado pela luz intensa da tocha que ardia no interior.
A seguir, apareceu um homem que estava a ser empurrado por trás, um homem de cabelo
branco, envergando uma única comprida e preta, que ali se apresentou imóvel, de
mãos atrás das costas. O rapaz agarrou-lhe numa madeixa do cabelo, puxou-lhe a cabeça
para trás com violência e o homem voltou-se ligeiramente de lado, dando a ver a
corda encarnada que lhe prendia os pulsos. Honor olhava para cima de boca
aberta, bem encostada à porta da taberna, de tal maneira que a tranca da porta se
lhe enterrou no ombro. Não vejo nada, resmungou um homem do meio da rua. Lá no alto,
o rapaz empurrou o homem para diante, obrigando-o a avançar para o parapeito,
onde o outro oscilou, a perder o equilíbrio. Não traz enfeites, riram-se os homens
cá de baixo. Que é das pérolas e das sedas lombardas? Esperem aí, respondeu o rapaz.
Depois começou a passar colares pelo pescoço do refém e a enrolar-lhe lenços de
cores vivas em redor do pescoço. Pronto. Assim já é um turco. Cá em baixo,
ouviram-se gargalhadas . O rapaz também se riu, e acrescentou mais uns ouros ao
conjunto. A certa altura, prendeu-se-lhe a manga numa das correntes que o homem
tinha em redor do pescoço, e o rapaz, aborrecido, puxou-a com força. O homem
mexeu os pés, para se equilibrar, mas tropeçou numa viga de ferro e caiu, mergulhando
até à rua, o fato ondulando no espaço. O corpo embateu nas pedras da calçada com
um ruído seco e ali ficou, imóvel. Um silêncio que era como um sudário destinado
a tapar o corpo abateu-se sobre os circunstantes. Já está, gemeu o velhote desdentado,
começando a recolher as colheres de prata. Aquele miúdo vai ser enforcado, e nós
vamos ter os homens do alcaide à perna». In Barbara Kyle, A Aia da Rainha, 2008,
tradução de Maria José Figueiredo, Planeta Manuscrito, 2009/2010, Lisboa, ISBN
978-989-657-058-3.
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de PlanetaM/JDACT