segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

A Mulher de Pedra. Tariq Ali. «Estava situada por cima do pomar de amendoeiras situado atrás da nossa casa e, quando vista à distância assemelhava-se bastante a uma mulher. Dominava a pequena colina onde se erguia, rodeada de ruínas e pedras»

jdact

O Verão de 1899
«(…) Foi a minha meia-irmã casada, Zeynep, que lhe disse que o primo que ela tinha em vista para mim não se interessava minimamente por mulheres, nem mesmo como máquinas destinadas à procriação. Zeynep começou a inventar histórias. A sua linguagem acabou por se deixar contaminar pela devassidão por si descrita, e a minha mãe sentiu que os seus relatos elaborados eram impróprios para os meus ouvidos solteiros. Pintou o meu pobre primo com cores tão sombrias e imorais que me foi pedido que abandonasse a sala. Mais tarde, nesse mesmo dia, enquanto me beijava e abraçava, a minha mãe lamentou-se com amargura. Zeynep convencera-a de que o nosso pobre primo era um monstro desprovido de piedade, e a minha mãe chorava ao pensar que poderia ter obrigado a sua única filha a casar com um ser tão bestial e depravado, transformando-se assim no instrumento da minha eterna infelicidade. Como seria de esperar, perdoei-lhe e depois conversámos e rimos acerca daquilo que poderia ter acontecido. Não estou certa de que ela tenha alguma vez descoberto que Zeynep inventou tudo. Quando o meu muito vilipendiado primo adoeceu no decorrer de uma epidemia de tifo, vindo a morrer passado pouco tempo, Zeynep achou melhor que a verdade permanecesse oculta aos olhos da minha mãe. O facto traduziu-se por um resultado infeliz. Durante o funeral do sobrinho, em Esmirna, e para grande consternação do meu tio Sifrah, a minha mãe sentiu grande dificuldade em revelar quaisquer sinais de desgosto, e quando eu me obriguei a chorar umas quantas lágrimas, ela brindou-me com um olhar onde a surpresa se misturava ao choque.
Tudo isto pertence ao passado. Para mim, a verdade mais importante é o facto de, ao fim de nove anos de exílio, poder estar de volta. O meu pai perdoou-me por ter fugido. Queria conhecer o meu filho. Quanto a mim, queria ver a Mulher de Pedra. Durante a infância, tanto eu, quanto a minha irmã havíamos descoberto esconderijos entre as grutas situadas junto de uma rocha antiga a qual em tempos devia ter sido a estátua de uma deusa pagã. Estava situada por cima do pomar de amendoeiras situado atrás da nossa casa e, quando vista à distância assemelhava-se bastante a uma mulher. Dominava a pequena colina onde se erguia, rodeada de ruínas e pedras. Não era nem Afrodite nem Atena. A elas nós reconhecíamos. Esta apresentava vestígios de um véu misterioso, o qual apenas se tornava visível quando o Sol se punha. O rosto estava oculto. Talvez, dizia Zeynep, se tratasse de uma qualquer deusa local há muito caída no esquecimento. Talvez o escultor estivesse com pressa. Talvez os cristãos estivessem a caminho e as circunstâncias o obrigassem a mudar de ideias. Talvez não se tratasse de nenhuma deusa, mas sim da primeira imagem esculpida de Mariam, a mãe de Jesus. Nunca conseguimos atribuir-lhe uma identidade e, assim, ela tornou-se a Mulher de Pedra. Enquanto fomos crianças, fizemos dela a nossa confidente, colocando-lhe perguntas íntimas e imaginando quais seriam as suas respostas.
Certo dia descobrimos que as nossas mães, tias e criadas faziam o mesmo. Passámos a esconder-nos atrás das rochas para escutarmos as suas histórias de tristeza e de dor. Esta era a única forma de sabermos o que se estava realmente a passar dentro da casa grande. Assim, a Mulher de Pedra transformou-se no repositório de todas as nossas dores ocultas. Os segredos são coisas terríveis. Mesmo quando necessários, acabam sempre por corroer as nossas almas. É sempre melhor ser-se franco, e a Mulher de Pedra proporcionava a todas as mulheres desta casa a possibilidade de desabafarem os respectivos segredos, dando-lhes a hipótese de terem uma vida interior saudável. Mãe, sussurrou Orhan à medida que me apertava o braço com força, será que o avô alguma vez me vai dizer qual o motivo que levou à construção deste palácio?» In Tariq Ali, A Mulher de Pedra, 2000, tradução de Lucília Rodrigues, Publicações Europa América, Contemporânea, 2002/2003, ISBN 972-105-125-X.

Cortesia de PEAmérica/JDACT