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Alguns destes núcleos, considerados marginais na organização sócio-espacial
urbana, de que eram os principais exemplos as mancebias, as mourarias e as
judiarias, constituíam elos apartados da restante rede habitacional, o que
contribuía de forma inequívoca para a diversificação topográfica das nossas
cidades. As mourarias, situadas normalmente em espaços degradados e
afastados das vias de circulação, circunscreviam-se sobretudo às localidades do
sul, como Santarém, Lisboa, Setúbal, Elvas, Évora, Moura, Beja e Silves (além
destas existiam outras mourarias em Leiria, Almada, Palmela, Alcácer do Sal,
Avis, Estremoz, Tavira, Loulé e Faro, todas elas resultantes do avanço da
Reconquista e da reorganização da população muçulmana nas cidades
cristianizadas); ao contrário das judiarias, que se localizavam nas
imediações, senão mesmo em áreas mais favorecidas do ponto de vista da
circulação e do comércio, e se distribuíam um pouco por todo o reino, embora a
sua concentração fosse mais significativa no interior da comarca da Beira e nas
localidades fronteiriças do norte e do centro do país. Entre as múltiplas
características que o mundo urbano medieval português nos apresenta, mormente a
partir do século XIII, importa acima de tudo destacar este carácter heterogéneo
e multi-confessional do seu espaço, partilhado por cristãos, muçulmanos e
judeus, revelador de um sistema vivencial de coexistência inicialmente moldado
por um sentimento de tolerância operado pela maioria cristã, que, ao longo do tempo,
foi dando lugar a mecanismos cada vez mais fortes de segregação, especialmente direccionados
para a minoria judaica. Na verdade, a população moura, embora presente em
pontos específicos, conheceu um importante decréscimo no território português
durante os séculos XIII a XV; uma tendência inversa à verificada entre a população
judia, cujo número aumentou de modo significativo desde as últimas décadas de
Trezentos até finais de Quatrocentos, mais concretamente até ao decreto régio
de Manuel I de 1496, que obrigou
judeus e mouros a optarem pela conversão ou pela expulsão do reino (um dos
motivos para o aumento da comunidade judaica entre nós, logo nos finais do
século XIV, prendeu-se com o movimento antijudaico então vivido em Castela e
que originou um forte fluxo migratório para Portugal, que se acentuou
particularmente nas últimas décadas do século XV). A comunidade hebraica, já de
si notada pelo estigma do credo religioso e distinguida pela ampla distribuição
territorial e expressão numérica do seu povo, bem como pelo peso que exercia
nas actividades económicas locais, foi desde cedo o principal alvo da
legislação normativa civil e eclesiástica, atenta sobremaneira em regulamentar
a convivência com a maioria cristã e, em consequência, o modo como o espaço
urbano era partilhado e ocupado pela minoria judaica. Essa realidade reflectiu-se
no perfil social e morfológico de muitas das nossas cidades e vilas, sobretudo
a partir dos finais do século XIV, altura em que a regulamentação
segregacionista anti-semita se acentuou particularmente.
Mas
se os contornos deste quadro urbano multi-étnico, com especial relevo no que
diz respeito à presença judaica, são conhecidos com algum pormenor para cidades
como Braga, Porto, Coimbra, Leiria, Guarda, Lisboa ou Évora, o mesmo não
podíamos dizer em relação a Viseu, onde só muito recentemente a história da
presença semita despertou de um modo mais amplo a atenção dos investigadores. O
aprofundamento concreto desta temática assume particular interesse pelo facto
de Viseu ter constituído, desde sempre, uma importante referência estratégica
na região centro de Portugal, em resultado da sua condição de sede de bispado e
de pólo de atracção do fluxo comercial que cruzava a cidade, ligando os portos
e os núcleos urbanos do litoral ao interior do país e à fronteira com Castela.
Este seu estatuto de centro administrativo, eclesiástico e comercial, reforçado
por boas infraestruturas viárias e fluviais, actuou como factor de desenvolvimento
e de fixação de gente, nomeadamente homens ligados ao trato da mercancia, entre
os quais se destaca a elite abastada dos mercadores e, claro está, os judeus.
Com efeito, remontam ao ano de 1284 os primeiros testemunhos da presença hebraica
em Viseu, cuja comuna se desenvolveu e prosperou sobretudo a partir dos inícios
do século XV, no preciso momento em que, por um lado, o país recebia um numeroso
contingente judaico oriundo de Castela e, por outro, a cidade dava início a um amplo
e exigente processo de reconstrução do seu tecido urbano, após os saques e as destruições
que resultaram da guerra travada durante décadas com o reino vizinho (sobre a
guerra travada com Castela durante o reinado fernandino, que se estendeu de 1369
a 1382, bem como as suas consequências na cidade de Viseu». In Anísio Sousa Saraiva, Metamorfoses da cidade
medieval. A coexistência entre a comunidade judaica e a catedral de Viseu,
Revista Medievalista, nº 11, 2012, Universidade de Coimbra; Centro de História
da Sociedade e da Cultura; Centro de Estudos de História Religiosa, IEM, ISSN
1646-740X.
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