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No ano de 476, o Império Romano do Ocidente, há tempos já corrompido e
devastado pelas lutas de poder, deixa de existir oficialmente. Os bárbaros zinhos, confiantes no seu valor e na sua
homogeneidade social, chegam em vagas, mas logo são arrebatados pela febre da
traição e da desconfiança. Nenhum império resiste muito tempo. Mas entre as
lutas religiosas e políticas, amplificadas pelas invasões bárbaras, pode
acontecer que um rei traído pelos seus súbditos e abandonado pelos mercenários
decorra aos camponeses, oferecendo a eles liberdade e a propriedade da terra,
obtendo em troca exércitos invencíveis. O envolvimento dos camponeses na
política, a explosão do artesanato, das manufacturas, da cultura dos ofícios e
da invenção de novas técnicas levam o povo a amadurecer uma ideia mais digna de
si próprio e um senso de justiça mais profundo. Assim, por volta do ano mil,
este novo modo de conceber e viver o mundo funde-se ao que resta das ideias do
cristianismo primitivo. Desenvolvem-se movimentos que unem a ideia do retorno
ao cristianismo puro e a vontade de organizar uma sociedade sem rei, generais
ou escravidão. Basicamente, a população dos fracos começa a revoltar-se contra
o poder sagrado e abençoado dos nobres patrões, inspirados pelo indispensável
clero. Eles também descobrem que os poderosos, como guerreiros profissionais,
não são muito valorosos: os artesãos e camponeses reunidos na comuna, armados
de lanças e bem treinados, muitas vezes conseguem abatê-los como fantoches.
Hereges
E já
que os nobres não servem para nada, por que não se livrar deles? E para que
servem os padres, que muitas vezes são bispos e condes ao mesmo tempo? Ninguém
mais acredita na santidade deles, já que, sob as vistas de todos, cometem todo o
tipo de pecado. E assim nasce a ideia de que os sacramentos, se administrados
por pessoas indignas, não têm nenhum valor. Ignorem o indigno exemplo deles,
grita logo um teólogo sigam o que dizem os ministros de Deus, não o que eles
fazem. No século X, começam a nascer em toda a Europa grupos de fiéis que pregam
e aplicam a comunidade do bem, a fraternidade, e recusam a autoridade
eclesiástica. Combatendo esses movimentos, as hierarquias eclesiásticas e
nobres (que muitas vezes são a mesma coisa) organizam-se para exterminar os
habitantes de regiões inteiras, condenando os sobreviventes ao suplício
público. No ápice dessa perseguição, muitas pessoas são torturadas e assassinadas
de formas horrendas apenas por terem apoiado a tese de que Jesus e os apóstolos
não possuíam riquezas ou bens materiais. O mero facto de ter uma Bíblia em casa
já bastava para levantar as suspeitas de se ser um inimigo da Igreja. Se essa
Bíblia ainda fosse traduzida para o latim vulgar, ou seja, uma língua entendida
pelo povo, e não tivesse autorização, a condenação por heresia era certa. Os cristãos
comunitários queriam inspirar-se no Evangelho, sem intermediários. E muitas,
muitas vezes, pagaram por isso com a própria vida. Um martírio que enfraquece
aquele dos primeiros cristãos sob o Império Romano. Contra os hereges, em dado
momento, chegou a ser inventado um instrumento repreensivo de perfeição
diabólica: a Inquisição (maldita). Os inquisidores
eram, ao mesmo tempo, policias, carcereiros, acusadores e juízes. Qualquer
anedota já era suficiente para acabar nas suas garras: um boato, uma carta anónima,
um comportamento ligeiramente diferente do normal. Até ser devoto em demasia
era considerado comportamento duvidoso. O suspeito era considerado culpado se não
conseguisse provar a própria inocência. E quem testemunhava em favor de um
suposto herege podia, por sua vez, tornar-se suspeito e sofrer um processo. Na verdade,
as perseguições aos hereges começam logo depois da criação da Igreja de Estado
e terminam no século XVIII, com as últimas vagas de caça às bruxas. As
histórias dos processos e das perseguições realizadas pela organização
eclesiástica e pelo Santo Ofício (maldito) são tão absurdas e contraditórias
que não nos permitem nenhuma análise verossímil. É impossível fazer um balanço
confiável dessas guerras e perseguições, e decerto milhões de pessoas foram
assassinadas em mais de mil anos de crueldade desumana.
Os exércitos cristãos
E,
como se não bastasse, foram os papas que ordenaram as Cruzadas e, posteriormente,
a colonização das terras novas e os massacres que se sucederam. Mas
vejamos em ordem. Primeiro, foram as tentativas de invadir a Palestina,
o Líbano e a Síria, com o pretexto de libertar o Santo Sepulcro. Em Storici arabi
alle crociate, Gabrieli reúne os testemunhos de vários cronistas medievais
no Médio Oriente. Por meio dessas declarações, pudemos saber que, até depois da
metade do século XII, ou seja, antes do começo das invasões dos
franco-cruzados, milhares de cristãos visitavam livremente a Palestina e todos
os lugares onde Jesus Cristo vivera e pregara. As Cruzadas foram um projecto
criminoso em todos os aspectos, e, mal nos questionamos sobre a sucessão de factos
que levaram à Terra Santa turbas desenfreadas aos gritos de Assim quer Deus!»
In
Jacopo Fo, Sérgio Tomat, Laura Malucelli, Il Libro nero del cristianesimo, O
Livro Negro do Cristianismo, Itália, 2000, 2005, Ediouro, Rio de Janeiro,
Brasil, 2007, ISBN 85-000-1964-6.
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