sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

Os Cus de Judas. António Lobo Antunes. «E tudo decorria, entretanto, na atmosfera de colégio interno que os quartéis subtilmente prolongam, com os seus segredos, os seus grupos iniciáticos, os seus estratagemas de perversidade primária»

Cortesia de wikipedia e jdact

A
«(…) Um pêndulo inlocalizável, perdido entre trevas de armários, pingava horas abafadas num qualquer corredor distante, atravancado de arcas de cânfora, conduzinho a quartos hirtos e húmidos, onde o cadáver de Proust flutuava ainda, espalhando no ar rarefeito um hálito puído de infância. As tias instalavam-se a custo no rebordo de poltronas gigantescas decoradas por filigranas de croché, serviam o chá em bules trabalhados como custódias manuelinas, e completavam a jaculatória designando com a colher do açúcar fotografias de generais furibundos, falecidos antes do meu nascimento após gloriosos combates de gamão e de bilhar em messes melancólicas como salas de jantar vazias, de Últimas Ceias substituídas por gravuras de batalha: felizmente que a tropa há-de torná-lo um homem. Esta profecia vigorosa, transmitida ao longo da infância e da adolescência por dentaduras postiças de indiscutível autoridade, prolongava-se em ecos estridentes nas mesas de canasta, onde as fêmeas do clã forneciam à missa dos domingos um contrapeso pagão a dois centavos o ponto, quantia nominal que lhes servia de pretexto para expelirem, a propósito de um beste, ódios antigos pacientemente segregados. Os homens da família, cuja solenidade pomposa me fascinara antes da primeira comunhão, quando eu não entendia ainda que os seus conciliábulos sussurrados, inacessíveis e vitais como as assembleias dos deuses, se destinavam simplesmente a discutir os méritos fofos das nádegas da criada, apoiavam gravemente as tias no intuito de afastarem uma futura mão rival em beliscões furtivos durante o levantar dos pratos. O espectro de Salazar pairava sobre as calvas pias labaredazinhas de Espírito Santo corporativo, salvando-nos da ideia tenebrosa e deletéria do socialismo. A PIDE prosseguia corajosamente a sua valorosa cruzada contra a noção sinistra de democracia, primeiro passo para o desaparecimento, nos bolsos ávidos de ardinas e marçanos, do faqueiro de cristofle. O cardeal Cerejeira, emoldurado, garantia, de um canto, a perpetuidade da Conferência de São Vicente de Paulo, e, por inerência, dos pobres domesticados. O desenho que representava o povo em uivos de júbilo ateu em torno de uma guilhotina libertária fora definitivamente exilado para o sótão, entre bidés velhos e cadeiras coxas, que uma fresta poeirenta de sol aureolava do mistério que acentua as inutilidades abandonadas. De modo que quando embarquei para Angola, a bordo de um navio cheio de tropas, para me tornar finalmente homem, a tribo, agradecida ao Governo que me possibilitava, grátis, uma tal metamorfose, compareceu em peso no cais, consentindo, num arroubo de fervor patriótico, ser acotovelada por uma multidão agitada e anónima semelhante à do quadro da guilhotina, que ali vinha assistir, impotente, à sua própria morte.

B
Conhece Santa Margarida? Digo isto porque, às vezes, na messe dos oficiais decorada com o mau gosto obstinadamente impessoal da sala de espera de um dentista de Moscavide (flores de plástico, oleografias imprecisas cujos arabescos monótonos se confundem com o papel da parede, cadeiras hirtas semelhantes a quadrúpedes desirmanados pastando num acaso sem simetria as franjas gastas dos tapetes), os majores em reboliço abandonavam os copos de uísque, de cubos de gelo substituídos por dados de pôquer, para, erectos como soldados de chumbo barrigudos, saudarem a entrada de uma senhora que qualquer coronel subitamente urbano comboiava, deixando atrás de si, perceptível na tremura dos galões, um rastro cochichado de cio de caserna, que se cristalizaria em esquemas explicativos no mármore venoso dos urinóis, destinado à alfabetização dos faxinas. A masturbação era a nossa ginástica diária, êmbolos encolhidos nos lençóis gelados à maneira de fetos idosos que nenhum útero desibernaria, enquanto, lá fora, os pinheiros e a névoa se confundiam numa trama inextricável de sussurros húmidos, sobrepondo à noite a noite pegajosa dos seus troncos, açucarados do algodão de feira popular da bruma. Como em pequeno na Praia das Maçãs, percebe, no fim de Setembro, quando nos deitávamos e o corpo se assemelhava a uma sementinha perdida no colchão enorme, enrugada e trémula, agitando os filamentos peludos dos membros em espasmos assustados pelo som do mar lá em baixo, vinde de parte nenhuma, a retrair e a distender a bronquite pedregulhosa do seu pulmão invisível. Os relógios de cuco davam lugar a cornetas igualmente irritantes, a farda e a pele convergiam numa carapaça única de quitina militar, os cabelos rapados e as formaturas traziam-me à memória as colónias de férias da infância e o seu cheiro a doce e azedo de pouca água, feito de resignação vagamente indignada. Aos domingos, a família em júbilo vinha espiar a evolução da metamorfose da larva civil a caminho do guerreiro perfeito, de boina cravada na cabeça como uma cápsula, e botas gigantescas cobertas da lama histórica de Verdun, a meio caminho entre o escuteiro mitómano e o soldado desconhecido de carnaval. E tudo decorria, entretanto, na atmosfera de colégio interno que os quartéis subtilmente prolongam, com os seus segredos, os seus grupos iniciáticos, os seus estratagemas de perversidade primária destinados a iludir a vigilância de prefeitos dos comandantes, mais preocupados com o trunfo do brídge, de cuja escolha dependeria o rumo tranquilo ou tempestuoso da digestão do jantar, do que com as convulsões nocturnas das camaratas perdidas atrás da caspa bolorenta dos plátanos, onde cães magros como galgos de Greco se uniam em coitos melancólicos, fixando-nos com olhos dolorosamente implorativos de freiras moribundas. Em Mafra, sob a chuva, vi correr os ratos entre os beliches na tristeza desmesurada do convento, labirinto de corredores assombrados por fantasmas de furriéis. Em Tomar, onde os peixes sobem do Mouchão para vogarem ao acaso pelas ruas em cardumes cintilantes, construí Jerónimos de paus de fósforo admirados pelas escleróticas amarelas dos paraquedistas com hepatite. Em Elvas, à ilharga de um aspirante gordo e inseguro como um pudim flan na borda de um prato, desejei evaporar-me nas muralhas da cidade à maneira dos violinistas de Chagall no azul espesso da tela, batendo as desajeitadas asas de cotão das minhas mangas militares, até pousar em Paris para uma revolução de exílio feita de quadros abstracto e de poemas concretos, a que o Diário de Notícias da Casa de Portugal forneceria o lastro lusitano de anúncios de casamento castos como notários hipermétropes, e de missas do sétimo dia adoçadas pelo sorriso sem carne dos mortos. E em Santa Margarida, aguardando o embarque, pastoreei longas bichas de soldados a caminho de um dentista demente que despovoava gengivas uivando de felicidade assassina: com os queixais da gajada não vai colega ter problemas, berrava-me ele, encostado à sua cadeira horrenda, reluzente de satisfação e de suor, a enterrar o maçarico em chamas da broca num maxilar apavorado». In António Lobo Antunes, Os Cus de Judas, Editora Dom Quixote, 2004, ISBN 978-972-202-759-5.

Cortesia de PdQuixote/JDACT