A canga de ferro e o trono dourado
«Às cinco da tarde do dia 5 de Novembro de
1817, as fortalezas dispararam os seus canhões: 21 tiros. Fragatas ancoradas na
barra replicaram. O cair da tarde iluminou-se, atrasando a noite. As águas
escuras transportavam o som de vivas, apitos e gritos. Bandeiras e flâmulas
coloridas tremulavam na viração. Girândolas de fogos explodiam no céu, num
chuveiro de estrelas. Os sinos das igrejas puseram-se a tocar, espantando as
pombas. Nas praias, multidão sem fim. Durante mais de duas horas, o foguetório
invadiu o convés das embarcações, somando o seu estrondo ao da artilharia. Palco
da festa, o Rio de Janeiro era então considerado um dos portos mais bem
localizados do mundo. As facilidades de intercâmbio com a Europa, América,
África e Índias Orientais tornavam-no um grande elo entre o comércio das várias
regiões do globo. Por influência do Oriente, viam-se por toda parte imensos
guarda-sóis para abrigar do calor e mulheres cobertas dos pés à cabeça por
capas escuras. Casas caiadas de branco com beirais arrebitados e papagaios de
papel no céu também traziam as cores da China e do Japão. Vista do mar, a
cidade aninhava-se entre os morros do Castelo e São Bento. Passando o Pão de
Açúcar, viam-se o morro da Mesa, assim chamado pela sua forma achatada no cimo,
e o Corcovado. A costa, sempre recoberta de vegetação, espreguiçava-se até a
bateria do Forte São João. Seguiam-se a encantadora enseada de Botafogo e a
extremidade da praia do Flamengo, guarnecida de pequenas chácaras. O tapete de
areia branca prolongava-se à beira-mar até o morro de Nossa Senhora da Glória,
encimado pela igreja de mesmo nome. A seguir, sóbrias torres identificavam as
igrejas de São José, do Carmo e dos Jesuítas. E depois, apinhado de gente, o
terreiro do paço. Pouco tempo havia que o Brasil passara a ser a verdadeira
sede da monarquia lusitana. Os senhores de terras, plantadores e agricultores
ricos, tinham saído do seu exílio, atraídos pelo brilho do porto e do que viria
ser a nova corte. Plebeus comuns, a maioria, juntavam-se aos plebeus dotados de
algum privilégio ou título de nobreza que formavam a pequena elite colonial com
o grupo emergente de ex-escravos ou de seus filhos. Apesar das belezas
naturais, tudo era horrivelmente sujo, fétido e abandonado. Cercado de
mangues e charcos, o burgo sofria com a falta de água e de higiene. Animais
pastavam pelas ruas. Havia capim e lixo em toda parte. O conteúdo dos penicos
era esvaziado pelas janelas. Apologistas da europeização, como o padre Luís
Gonçalves Santos, mais conhecido como padre Perereca, criticavam tais bisonhos
e antigos costumes que só se podiam tolerar nesta porção da América e que não
estavam mais em uso entre povos civilizados. De facto, parecia mesmo
bisonho o costume de morar em ruas estreitas no meio das quais corria um canal
de águas servidas. Ruas também cheias de edifícios, em geral de dois pavimentos
e paredes de granito, que tinham o pavimento inferior ocupado pela
loja ou armazém; o segundo e o terceiro, [...] pelos aposentos da família para
cujo acesso existiam corredores estreitos e compridos, como descreveu o
comerciante inglês John Luccok, que desembarcara no Rio em 1808. Focados no
cenário arquitectónico, os oficiais prussianos Von Leithold e Von Rago
queixavam-se de que o único passeio para os habitantes era uma praça junto ao
mar que, pelo traçado dos canteiros, mais parecia uma horta! Impressionava,
também, o número de negros, escravos ou livres, dando aos forasteiros que ali
passavam a impressão de ter desembarcado na África. Mas não era só de lá que
esses negros chegavam, vindos da Costa da Mina, Congo e, mais tarde, Moçambique
e Angola. Também negros, escravos ou libertos, vindos da América espanhola e
confundidos com trabalhadores livres misturavam-se no labirinto da cidade.
Entre eles, ranchos de audaciosos capoeiras cruzavam a Candelária armados de
paus e facas, exibindo-se num jogo atlético apesar das penalidades impostas,
muitas chibatadas aos escravos que capoeirassem. Carregadores e mulheres
ambulantes, ligeiramente vestidas, transportavam toda a sorte de mercadoria na
cabeça: frutas, animais vivos, pacotes, feixes de fumo, água potável, roupas
sujas e limpas e tigres, isto é, tinas com excrementos. Nesse dia,
seguida por uma esquadra, a pesada nau D. João VI fixou ferros quase em frente ao
Mosteiro de São Bento, ao lado da ilha das Cobras. Como faróis, as duas torres
do edifício velavam sobre a baía. Nas janelas, enfeitadas com sedas de
diferentes cores, apinhavam-se monges vestidos de sarja castanha. Aos pés do
morro, o cais do Arsenal Real da Marinha fora arranjado com luxo. Até então,
ali reparavam-se os navios portugueses e era grande o movimento dos
trabalhadores em torno da calafetagem de barcos». In Mary del Priore, A Carne e o
Sangue, A imperatriz D. Leopoldina, D. Pedro I e Domitila, a marquesa de Santos,
Editora Rocco, Rio de Janeiro, 2012, ISBN 978-858-122-050-5.
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