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«(…) Lucarelli pousou a sineta em
cima da cómoda. Se precisar de si chamarei pelo seu nome, Bernarda, declarou o
prelado, virando-lhe as costas, em jeito de resolução sancionada e ractificada,
sem direito a apelo. Ninguém deve entrar nos aposentos, a não ser que eu o
solicite, entendido? Sim, reverendo monsenhor. Necessita de mais alguma coisa?,
perguntou a irmã antes de deixar os aposentos. Ele já tinha aberto a mala e
retirado algumas vestimentas que ia pousando na beira da cama. Confiante,
organizado e metódico, acrescentou a irmã à lista de características do enviado
de Roma que estava a elaborar mentalmente. Observar tudo. Sim, disse, sem olhar para ela nem
parar o que estava fazer. Pode, por favor, providenciar-me um fato impermeável
e esquis?
Matteo Bonfiglioli nunca conhecera
os pais. Não que isso importasse muito, ao fim de quase trinta anos.
Habituara-se à ideia desde muito cedo, quando se apercebeu que só podia
depender de si mesmo e de mais ninguém. As várias famílias de acolhimento haviam-no
demonstrado empiricamente. Os inúmeros pais
extremosos
que tivera não se coibiram de manifestar o seu afecto com o cinto, e até um
padre se dignou exibir o seu amor por ele com uma vergasta numa mão enquanto
segurava as calças desapertadas com a outra. Aos dez anos já tinha passado por
oito funcionais, estáveis e afectuosas famílias de acolhimento e conhecido
quatro assistentes sociais. Só podia ser do feitio irreverente do rapaz que não
se acobardava ao cinto nem à vergasta, nem a nenhum outro acessório educador. E
depois, aquela mania de meter-se, feito herói de palmo e meio, onde não era
chamado, e de estar sempre pronto para defender os irmãos que iam e vinham como os turistas de passagem, e que,
a maior parte das vezes, nem aqueciam a cama. Os olhares amedrontados,
condoídos, na esperança que os novos tutores gostassem deles, tentando retardar
ao máximo o primeiro berro do pai, a primeira surra
da mãe. Matteo sabia que
era tempo perdido, e a inevitabilidade de o cinto não se manter preso às calças
tão certa como a morte. Pareciam escolhidos a dedo, e todos, sem excepção,
usavam cinto.
Úrsula, a sua quinta assistente
social designada pelo estado, mudou tudo. A rechonchuda funcionária pública
tornou-se, ela própria, a sua nona família de acolhimento quando ele tinha 10 anos,
só ela e ele, sem cintos nem más palavras, nem calças desapertadas, nem
vergastas. Isto é uma relação para a vida inteira, Matteo, avisou-o no primeiro
dia. Não te vou devolver ao estado, aconteça o que acontecer, faças o que
fizeres. Isto pode correr muito bem ou muito mal. Portanto, o melhor é que nos
dêmos bem desde o início. Pela primeira vez, alguém lhe ditava regras com algum
sentido. Havia horas para estudar, para brincar, para ver televisão, para comer,
para dormir. Esperava-se dele que tivesse aproveitamento escolar, que evitasse
altercações patetas e inúteis, dentro e fora da escola, que cumprisse as leis
civis em vigor, sempre. Podia ser criança mas não piegas, tinha 10 anos, não
era um bebé mimado e não podia, em situação alguma, tratá-la por mãe. Desde que
fossem cumpridos estes preceitos não haveria problemas, e Matteo não era rapaz
para procurá-los deliberadamente, especialmente se não houvesse razão para
isso. Nunca se apercebera que Úrsula tivesse qualquer relação com alguém. Viu
um homem de meia-idade dar-lhe um envelope uma vez que chegou mais cedo da
escola, e acabou por vê-lo mais tarde, mais duas ou três vezes, mas não lhe parecia
nada sério dada a rapidez com que ele ia embora.
Dez anos depois, Úrsula
arranjou-lhe uma bolsa que lhe financiou integralmente o curso de Línguas e
Literatura na Università Degli Studi. Um cancro nos intestinos levou-a antes da
láurea final da licenciatura. Foi a primeira vez que Matteo chorou por alguém. Por
vezes pensava que decerto algum ser, algures no universo, puxava cordelinhos
invisíveis que faziam aparecer as pessoas certas às desorientadas, e durante o
tempo necessário para fazer a diferença. A Úrsula das regras quase militares,
das leis, das exigências, da falta de instinto
maternal, aquela a quem não podia, em situação alguma, chamar mãe ainda teve um
último gesto: deixara-lhe em testamento a casa em que viviam e uma conta bancária
que a todos os dias trinta de cada mês crescia mil e quinhentos euros.
Perguntou ao gerente do banco de onde vinha aquele dinheiro todos os meses e
ele respondeu-lhe que se tratava de uma poupança que Úrsula lhe deixara.
Gostasse ou não, fora a
mãe dele e sê-lo-ia sempre». In Luís Miguel Rocha, A Filha do Papa, Porto
Editora, 2013, ISBN 978-972-004-411-2.
Cortesia de
PEditora/JDACT