sexta-feira, 4 de março de 2016

As Filhas de Rashi. Rachel. Maggie Anton. «Eliezer acordou com o chilrear de pássaros acima dele, e agradeceu aos céus por ainda estar vivo. Podia sentir que algo estava a ser cozinhado e o seu estômago contraiu-se de dor»

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Troyes, França. Verão de 4851 (1091 D. C.)
«(…) Era evidente que o seu desprendido marido não podia dar-se ao trabalho de lhe escrever para lhe comunicar que se atrasara. Não lhe teria passado pela cabeça o quanto ela se preocupava? Rachel começou a cerrar os punhos, mas deteve-se antes de amarrotar aquele valioso documento que era o seu get condicional. Que uma praga se abata sobre Eliezer! Não fazia a menor ideia do que era, para ela, passar dias e dias, ansiosa, e longas noites solitárias, a perguntar a si própria o que poderia ter-lhe acontecido. Seria bem feito para Eliezer se ela se dirigisse ao beit din, na quinta-feira, seis meses e um dia depois de ele haver partido, apresentasse o seu get condicional e ficasse divorciada. Teria de aguardar mais três meses antes de voltar a casar-se, e, por essa altura, já Eliezer certamente estaria de regresso a casa. Então, seria a vez de ele esperar e sofrer, enquanto Rachel se decidisse se deveriam ou não reconciliar-se. Aquela ideia era tentadora, mas atrever-se-ia ela a concretizá-la? Voltou a respirar fundo. Provavelmente, Eliezer estava à espera da chegada de um barco que trazia a sua mercadoria, ou a negociar um contrato com alguém que podia estar a aproveitar-se do seu desejo em apressar-se. Rachel podia pensar numa dúzia de motivos legítimos para o facto de Eliezer ainda não haver regressado. Olhou, com expressão carregada, para o papel que tinha na mão. Quando um marido decente e carinhoso sabe que vai demorar-se, faz um esforço para informar a mulher. De novo, a fúria a invadiu, ao imaginar Eliezer a tratar de negócios no Magrebe, talvez a marcar encontro com uma meretriz da região que servisse à mesa, sem pensar sequer na sua fiel esposa, que tanto se atormentava em casa.
Contudo, podia haver um outro motivo para aquele atraso, motivo esse que a fazia estremecer só de pensar nele. E se algo horrível o tivesse detido, algo que o incapacitara de lhe escrever? De súbito, Rachel pensou em Shemiah e em Asher, o pai e o irmão de Eliezer, arrastados pela corrente tumultuosa de um rio, durante as cheias, há seis anos, depois de o seu barco se haver virado, durante uma viagem mercantil de rotina a Praga. Por favor, mon Dieu, protege o meu marido e trá-lo de volta para mim, são e salvo. Talvez pressentindo a sua agitação, a pequena Rivka começou a mexer-se no berço. Rachel apressou-se a guardar novamente o get na arca e pegou ao colo na filha de um ano de idade. A bebé agarrou com as mãozinhas a sua camisa à procura dos seios, e Rachel deitou-se na cama para a amamentar. Enquanto afagava a sua cabecinha coberta de caracóis pretos, disse a si mesma que tinha de ser paciente. Eliezer nunca faltara à inauguração da Feira de Verão. Com certeza estaria de regresso antes do final da semana. E quando aparecesse, Rachel faria tudo para que ele nunca mais se atrasasse sem a informar devidamente. Soltou um leve suspiro. Pára de te atormentares por causa de Eliezer, ordenou a si própria. Pensa em como os sorrisos da tua filha te deliciam, no orgulho que sentes por Shemiah, de cinco anos, estar a aprender a ler tão depressa a Torá. Imagina os preços que irás conseguir pelas jóias que obtiveste através da tua casa de penhores. Contudo, nenhum daqueles pensamentos agradáveis impedia de se inquietar com o que teria acontecido ao marido.

Eliezer acordou com o chilrear de pássaros acima dele, e agradeceu aos céus por ainda estar vivo. Podia sentir que algo estava a ser cozinhado e o seu estômago contraiu-se de dor. Além do mais, tinha uma cãibra na perna direita, mas, quanto tentou esticá-la, percebeu que não podia mexer-se. Tinham-no amarrado ainda mais do que o habitual, na noite anterior. Há quantos dias estava ali prisioneiro, amarrado a uma árvore, algures na Floresta da Borgonha? Há uma semana, pelo menos. Quanto tempo se passaria até que algum mercador passasse pela zona ou um grupo de judeus pudesse resgatá-lo?» In Maggie Anton, 2009, Rachel, As Filhas de Rashi, tradução de Catarina e Joel Lima, Círculo de Leitores, 2012, ISBN 978-972-42-4776-2.

Cortesia de CLeitores/JDACT