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«(…) Permaneci ali sentada, aturdida, em frente daquele amontoado de
escombros e rodeada por pessoas e crianças que me fitavam de perto, atónitas,
enquanto ia engolindo, a custo, o chá com cardamomo. A humidade escorria-me
pela face, como uma espécie de orvalho das noites de Verão que tínhamos no Faial.
Voltei a casa ainda muito combalida pela minha primeira experiência na Índia.
Toda a família concordou então que devia descansar uns tempos antes de voltar a
mergulhar noutra dura experiência da vida indiana. Eram já horas de jantar e
tinha de me refrescar para tirar de mim a sujidade e o pó daquele dia e, quem
sabe, talvez mesmo limpar-me dos pensamentos mais íntimos e da tristeza que me
acabrunhava. Esta era a primeira refeição principal desde a nossa chegada. E eu
bem sabia que Taí fizera uso de toda a sua culinária para nos preparar um menu tradicional. A família reuniu-se na
sala de jantar e todos se foram sentando nos lugares habituais à volta da
enorme mesa. Bhauji ficou à cabeceira, Taí ao seu lado direito e Mohan, o filho
mais velho, do lado esquerdo. Mohan tinha sido um bom estudante e agora
trabalhava no Departamento de Estatísticas do Governo de Bombaim. Ao seu lado
estava Kishori, a mulher, e, completando a roda, seguia-se Shalini e Meena, a filha
mais nova de Taí. Na cabeceira oposta, Lica e eu. À frente de cada um de nós
havia um thalli, um enorme prato de
metal inoxidável, com uma borda à volta. Do lado esquerdo do thalli tinham colocado um copo com água.
O criado trouxe para a mesa os chapatis,
uma espécie de pancake, feito com farinha,
água e sal, que serve de pão nas refeições indianas. Depois vieram mais três
travessas, com diferentes preparações de vegetais com especiarias, servidas em
pequenos recipientes do mesmo metal e colocadas na borda, mas dentro do thalli. Estes preparados, que se assemelham
a um guisado, são chamados subji, ou chàque, e fazem parte de todas as
refeições. Usando as duas mãos, tirei um bocado do chapati e, dobrando-o como se fosse uma pequena concha, meti tudo
na boca de uma só vez. Assim me fui servindo dos diferentes recipientes,
observando sempre como os outros faziam. Infelizmente, não reparei nas mãos.
Foi-me dito imediatamente que nunca devia usar a mão esquerda para pegar na
comida. Só a mão direita, lembre-se de que a mão esquerda só é usada para pegar
num copo ou para nos lavarmos na toilette.
É considerada uma mão impura.
O diferente uso das mãos era verdadeiramente extraordinário. Chegava a
ser bastante desrespeitoso se estendêssemos a mão esquerda para aceitar uma oferta
ou qualquer coisa que nos dessem. O mesmo acontecia em cerimónias tradicionais
ou religiosas, quando se recebia o prassad,
uma espécie de água ou doce bento. De futuro teria de me lembrar sempre disto.
O criado voltou com o prato principal, arroz cozido sem sal e o caril de peixe.
No centro do thalli foram servidas
umas colheres de arroz e, ao 1ado, perto do arroz, o caril. Nunca se deve
servir o caril por cima do arroz, de forma nenhuma, disseram-me, em casa
de um saraswat-brahma nunca se
deve fazer uma coisa dessas. Isso é um mau hábito das castas inferiores.
Depois do caril de peixe foi servido, uma vez mais, arroz, mas desta vez com
iogurte. Esta parte da refeição acabava com o cuddi, uma bebida fresca feita com leite de coco e especiarias.
Terminado o repasto, levantámo-nos e dirigimo-nos ao compartimento seguinte,
onde havia lavabos. Era aqui que se podia bochechar e lavar os dentes e as
mãos. Só depois desta primeira ablução parcial é que a fruta e os doces eram
trazidos para a mesa. Depois do jantar fomos para a sala e começou a conversa.
Todos falavam animadamente, oscilando entre duas ou três línguas diferentes.
Todos falavam, menos eu. Completamente exausta pelo longo dia, fiquei de 1ado,
enquanto as experiências do dia me iam passando pela mente, mais parecendo um
sonho do que uma realidade». In Edila Gaitonde, As Maçãs Azuis. Portugal
e Goa 1948 – 1961, Editorial Tágide, F. Oriente, 2011, ISBN 978-989-95179-9-8.
Em memória de Ofélia e Álvaro José.
Cortesia de E. Tágide/JDACT