Cortesia
da BNP e jdact
CAMÕES
Canto
Primeiro
[…]
«Vem;
não receies a acintosa mofa
desta
volúvel, desprezível gente,
povo
de variáveis sycophautas:
não te
conhecem elles. Eia! Vamos:
deixa
o caminho da infeliz Pyrene;
taes
mágoas, com ahi vão, poupa a meus olhos;
Assás
tenho das minhas. Largo! aos mares:
livres
corramos sobre as ondas livres
do oceano
indomado por tyrannos,
livre
como sahiu das mãos do Eterno,
sua feitura
única no globo,
que impias
mãos d'homens não poderão inda
avassallar,
destruir. Ahi d'entre as vagas
surge
a princeza altiva das armadas,
pátria
da lei, senhora da justiça,
couto
da foragida liberdade.
Salve,
Britania, salve, flor dos mares,
eu te
saúdo, ó terra hospitaleira!
Se ora,
pousando em tuas ricas praias,
podesse
ir abraçar fieis amigos,
que pelas
ribas desse nobre Thamesis
vivem
á sombra d'arvore sagrada
de abençoada
independência a vida!
Não posso;
mas sobeja-me a lembrança
indelével,
e a voz não morredoura
da sincera,
gratissima amizade.
Certo
amigo na angústia, que aos tormentos
myrradores,
que a vida me entravavão,
aligeiraste
o peso, e com amiga
dextra
cravaste á roda do infortúnio
cravo,
que ao giro bárbaro lhe impece
de alfim
dar cabo aos procellosos dias
do malfadado,
perseguido vale;
a ti
minhas endeixas mal cantadas
nas solidões
do exílio, onde as repettem
os ermos
echos de estrangeiras grutas,
a ti
meus versos consagrei na lyra:
quebrada
sobre o escolho da desgraça
inda
languidos sons desfere a medo,
que a
teu fiel ouvido vão memorias
Lembrar
da patria, e recordar do amigo.
Ouves?
Rija celeuma aos ares sobe,
e fere
os ventos, que nas ondas folgão.
Terra,
terra! Bradou gageiro álerta.
Terra!
echoa confusa vozeria
da maritima
turba: Oh! Voz querida,
doce
aurora de gôso, e de esperança
ao coração
do nauta enfraquecido,
do alquebrado
sequioso passageiro,
que a
esposa, os filhos, ou talvez a amante
nessa
voz doce, e grata lhe alvejarão.
Terra,
e terra da pátria! Debuxada
se ve
pullando a magica alegria
Nnos
semblantes de todos. Ja contentes,
um se
affigura surprehender o amigo,
outro
á esposa fiel cahir nos braços;
este
da velha mãe, que ha tanto o chora,
ir enchugar
as lagrimas afflictas;
aquelle
entre alvoroços, e receios,
não ousa
de pensar se ao pae enfermo
na descarnada
mão rugosa, e sècca
osculo
filial lhe é dado ainda.
Respeitoso
imprimir, ou se a ternura,
se o
amor de filho sobre lage avara
se irá
quebrar de gélido sepulcro,
que
em sua ausência, tamlonga, lho roubasse.
Qual
da amada, que sempre foi constante,
ou sempre,
ao menos, lha pintou de longe
a namorada
ideia, perto agora
começa
de temer que tal distancia,
separação
tammanha, e tam comprida,
novo
amante mais perto... Mas quem sabe?
Talvez...
E esse talvez é de esperança
querida
sempre, sempre lisonjeira».
[…]
In
Almeida Garrett, Camões, Poema, Camoneana 423, Paris, R. 32594, Livraria
Nacional e Estrangeira, Rue Mignon, 2, faub. St. Germain, Biblioteca Nacional
de Portugal (Biblioteca Nacional de Lisboa) 1825.
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