O
Namoro
«(…)
Vivia muito isolado, como se sabe. Muitas vezes não tinha quem o tratasse, e
queixava-se-me. Estava realmente muito apaixonado por mim, posso dizê-lo, e
tinha uma necessidade enorme da minha companhia, da minha presença. Dizia-me numa
carta: ... Não imaginas as saudadas que de ti sinto nestas ocasiões de
doença, de abatimento e de tristeza.... E mostra-o bem, nesta quadra que me
fez:
Quando
passo um dia inteiro
sem
ver o meu amorzinho
cobre-me
um frio de Janeiro
no
Junho do meu carinho.
Em
Maio de 1920, a Carris entrou em greve por uns dias, e passámos a fazer o
percurso de comboio. Para que o meu Pai não soubesse que eu saía com o
Fernando, ele apanhava o comboio no Cais do Sodré e eu em Santos. Assim conversávamos
até Belém. Não digo namorávamos, porque o Fernando não gostava, conforme
já contei. Quando acabou a greve, ia buscar-me, à tarde, como de costume e
vínhamos de eléctrico para casa, mas, como ele achava que o trajecto não era
suficientemente longo, dizia a brincar: E se fingíssemos que nos enganávamos
e nos metêssemos num carro para o Poço do Bispo? Este escritório, onde eu
estava empregada, fundiu-se, entretanto, com outro, na Rua Morais Soares, para
onde fui e onde, portanto, o Fernando passou a ir buscar-me. Nesta altura, trabalhava
ele, como correspondente, na Casa Toscanoy na Rua de S. Paulo. Aí passava as
manhãs de domingo, de onde me telefonava. Como se sabe, o Fernando não gostava
nada de falar ao telefone. Para nos podermos ver também ao domingo, eu, em vez
de ir à missa à igreja de S. Domingos, como costumava, ia à da Conceição Velha,
porque, depois, o Fernando (ele não assistia à missa, era crente mas não
praticante) acompanhava-me a casa e assim tínhamos mais tempo para conversar no
caminho. Muitas vezes me pediu para sairmos também à tarde. Numa carta, dizia: era
excelente eu poder encontrar-te ao domingo de tarde, por exemplo.... Mas
nunca o fizemos. Eu não podia, porque a família, principalmente o meu pai, que continuava
sem saber de nada, era muito rigoroso comigo e não me era fácil arranjar um pretexto
para sair...
O
Fernando era uma pessoa muito especial. Toda a sua maneira de ser, de sentir,
de se vestir até, era especial. Mas eu talvez não desse por isso, nessa altura,
talvez porque estava apaixonada. A sua sensibilidade, a sua ternura a sua
timidez, as suas excentricidades, no fundo, encantavam-me. Por exemplo, o
Fernando era um pouco confuso, principalmente quando se apresentava como Álvaro
de Campos. Dizia-me então: hoje, não fui eu que vim, foi o meu amigo Álvaro
de Campos... Portava-se, nestas alturas, de uma maneira totalmente
diferente. Destrambelhado, dizendo coisas sem nexo. Um dia, quando chegou ao pé
de mim, disse-me: trago uma incumbência, minha Senhora, é a de deitar a fisionomia
abjecta desse Fernando Pessoa, de cabeça para baixo num balde cheio de água.
E eu respondia-lhe: detesto esse Álvaro de Campos. Só gosto do Fernando
Pessoa. Não sei porquê, respondeu-me, olha que ele gosta muito de ti. Raramente
falava no Caeiro, no Reis ou no Soares.
O
Fernando, principalmente quando se encontrava abatido, não acreditava que eu pudesse
gostar dele. Dizia-me numa carta: se não podes gostar de mim a valer, finge,
mas finge tão bem que eu não perceba. Ou, então, como nesta quadra:
O
meu amor já me não quer
já
me esquece e me desama
tão
pouco tempo a mulher
leva
a provar que não ama.
Um
dia ao passarmos na Calçada da Estrela, disse-me: o teu amor por mim é tão
grande, como aquela árvore. Eu fingi que não percebi. Mas não está ali
árvore nenhuma... Por isso mesmo, respondeu-me ele. Outra vez, disse-me: chega
a ser uma caridade cristã tu gostares de mim. És tão nova e engraçadinha, e eu
tão velho e tão feio». In Fernando Pessoa, Cartas de Amor,
Organização de David Mourão Ferreira, preâmbulo de Maria da Graça Queiroz,
Lisboa, Edições Ática, 1978.
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