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Prefácio
«(…) Desde há um século, vários eruditos ou historiadores tomaram
conhecimento do grande documento de Pamiers. Entre eles, figuram o alemão Döllinger,
que se tornou célebre pelos seus conflitos com o papado romano e pelos seus
belos estudos sobre a heresia medieval e também vários eruditos franceses, muitas
vezes de origem meridional: Chafles Molinier, mons. Douais, JM Vidat, desde o
início do século XX...; e muitos outros, em seguida. Os trabalhos mais eruditos
e mais extensos sobre o próprio manuscrito vêm de JM Vidal. A publicação
integral do registo deve-se a J. Duvernoy (1965). Não-deixa de ter os seus
defeitos, vigorosamente denunciados pelo padre Dondaine, mas tem, no entanto, o
imenso mérito de existir, não dispensando em todo o caso o recurso ao original.
O acaso das investigações de Fournier e a distribuição muito desigual da
heresia determinaram que 28 acusados, conhecidos pelo Registo, sejam originádos de Montaillou e de Prades; e, dentre
eles, 25 são mesmo de Montaillou. Esta circunstância foi uma catástrofe para os
aldeões desta terra. Em contrapartida, oferece ao historiador inestimáveis possibilidades.
É de facto sabido, desde os trabalhos de Redfield, de Wylie e de alguns outros,
que a visão terra a terra, à flor do solo, da sociedade camponesa, se concilia perfeitamente
com a monografia aldeã. A nossa pesquisa não será excepção a essa regra de ouro:
a aldeia posta em causa e que o acaso dos documentos escolheu para nós, é
Montaillou, a 1300 m de altitude, perto das nascentes do Hers; a Leste do alto
vale de Ariège e não longe dele. Fixada no seu planalro, Montaillou desempenhou,
por volta de 1290-1320, na época a que se referem os interrogatórios de Jacques
Fournier, diversas funções: a comunidade serviu de refúgio à heresia gíróvaga
que, destruída nas regiões baixas, travou um combate de honra na alta
Ariège. A criação de gado local proporcionou apoio à transumância: para a
Catalunha, para as regiões do Aude ou em direcção à alta montanha pirenaica. Há
ainda, para as devotas do culto mariano, e elas são numerosas, uma peregrinação
à Virgem.
Fixemo-nos primeiramente, nesse problema crucial que é a heresia: os
burgos e pequenas cidades da regiao baixa, com Pamiers à cabeça, estavam, na
época focada neste livro, quase inteiramente reconquitados pela ortodoxia; a
propaganda das ordens mendicantes e as incursões policiais tinham saneado, ou
quase, o abcesso cátaro ou valdense. Jacques Fournier, na sede da sua diocese,
podia doravante permitir-se o esmero: reprimia um quarteto de homossexuais;
acossava mesmo, à sombra da sua catedtal, o folclore das almas do outro mundo.
Compleamente diferente era a situação de Montaillou, aldeia à qual é preciso
acrescentar neste caso a zona circunvizinha da região de Aillon e a região alta
adjacente de Sabarthès (ou seja, a alta Ariège, a sul do desfiladeito de la
Barte). Longe das polícias de toda a espécie, a nossa aldeia oferecera, a partir
de 1300, um terreno fértil e de início sem grande perigo pata a acção militante
dos irmãos Authié, missionátios da reconquista câtara. As coisas, no entanto,
tinham-se deteriorado rapidamente. Depois de algumas devastadoras incursões dos
inquisidores de Carcassonne, que vieram como réplica (foi no dia da Assunpção,
15 de Agosto, de 1308 que terá tido lugar a prisão em massa das pessoas de Montaillou
pela Inquisição [maldita]de Carcassonne),
Jacques Fournier por sua vez reagiu duramente perante a situação, para ele
intolerável, que os Authié tinham criado, a qual se prolonga para além da sua
morte: de 1319 a 1324, multiplica as convocações e os interrogatórios decretados
aos habitantes da aldeia culpada. Põe a claro toda uma série local de
actividades heterodoxas que se escalonam desde a década de 1290. Maníaco do
pormenor, põe nu, para além das crenças e dos desvios, a própria vida da comunidade.
Eis, pois, Montaillou, em si e por si, ao compasso das investigações de Jacques
Fournier; limitei-me a reagrupá-las e reorganizá-las, no espírito da monografia
aldeã.
Ecologia de Montaillou. A casa e o pastor. Ambiente e poderes
Em primeiro lugar, duas palavras a propósito da demografia da aldeia,
sobre a qual serei breve, reservando-me a oportunidade pata aí voltar, quanto
às componentes. Montaillou não é uma grande paróquia. Na altura dos acontecimentos
que motivaram a investigação de Fournier, a população local contava entre 200 e
250 habitantes. No fim do século XIV, passada a peste negra e os primeiros
efeitos, directos ou indirectos, das guerras inglesas, as listas de fogos e os
livros foreiros do condado de Foix não enumeram na mesma comunidade mais do que
uma centena de almas, distribúdas por 23 fogos. Ou seja, a habitual quebra de
mais de metade da população, que se regista um pouco por toda a parte no Sul de
França, sob a acção das catástrofes da segunda metade do século XIV. Mas, na
altuta da repressão anti-cátara, ainda falta um pouco para isso...» In
Emmanuel le Roy Ladurie, Montaillou, village occitan de 1294 à 1324, Editions
Gallimard, 1975, Montaillou, Cátaros e Católicos numa aldeia francesa.
1294-1324, Edições 70, Lisboa.
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