terça-feira, 29 de março de 2016

De sopranos e barítonos ou como Eça de Queiroz revisita a ópera do século XIX. Jorge Valentim. «Eça de Queirós parece revestir as suas criaturas de timbres vocais específicos, colocando em prática o seu projecto de olhar irónico sobre o idealismo romântico»

jdact e wikipedia

«O presente ensaio tem como objectivo propor uma leitura do romance de Eça de Queirós, O Primo Bazílio, a partir das referências directas às óperas e peças musicais mencionadas e performatizadas ao longo da narrativa. Tais citações funcionam como intertextos musicais, no sentido de propiciar um diálogo entre os discursos musicais instrumentais e vocais com a trama ficcional, incidindo de maneira significativa na construção da trajectória das personagens. Conhecedor das técnicas de composição operística em vigor na Europa e leitor das condições sociais do seu país, Eça de Queirós parece revestir as suas criaturas de timbres vocais específicos, dando-lhes assim uma função representativa e colocando em prática o seu projecto de olhar irónico sobre o idealismo romântico». In Resumo

«Assim a música aparece neste século como uma voz inesperada em que se entendem os desconsolados. E os desconsolados foram toda uma mocidade triste e enervada, toda uma primavera sagrada. Eça de Queirós (correspondência de Fradique Mendes). Dentro dos estudos culturais direccionados ao século XIX, é já um consenso das críticas literária e musical que o período oitocentista europeu é marcado pelo amadurecimento e apogeu de dois dos principais géneros da época. De um lado, o romance que, na esteira da ideologia burguesa, se tornou o meio de divulgação e propagação dos mais variados pontos de vista sobre o domínio burguês na literatura e nas artes. De outro, a ópera que, favorecida pelas construções dos grandes teatros, pela difusão febril da escola italiana do bel canto, bem como pelas suas companhias teatrais, e pela criação e produção de determinados enredos dramáticos, soube colocar no palco, não apenas as circunstâncias ficcionais do Oitocentos, mas também atendeu ao gosto de um determinado público com uma realização musical compreensível, na abrangência das suas três principais escolas: a italiana, a francesa e a alemã. Como na Península Ibérica, sobretudo em Portugal, não se chega a formar uma escola operística propriamente dita, sem menosprezar, é claro, os casos de Ciríaco Cardoso, Arthur Napoleão e Francisco Sá Noronha, dentre outros, é compreensível o facto de muitas companhias de ópera terem invadido os palcos portugueses com as obras de compositores italianos, franceses e alemães, ditando assim um gosto público que tentava colocar Portugal na rota dos principais centros culturais e intelectuais da Europa. Neste sentido, observador arguto da cidade e da sociedade de Lisboa, Eça de Queirós constrói em O Primo Basílio, para além de um episódio doméstico e de uma das mais reconhecidas obras do Realismo português, uma espécie mesmo de drama operístico, onde não faltam as figuras da prima donna, do amante sedutor, do marido traído, do amigo incondicional, da vilã aterrorizante e de personagens giocosos. É bom lembrar, aqui, que tal técnica de composição não era de todo desconhecida do escritor português. Em Antero de Quental, de 1896, o próprio Eça confessa que sob a influência de Antero logo dois de nós, que andávamos a compor uma ópera bufa, contendo um novo sistema do Universo, abandonamos essa obra de escandaloso delírio (1920). Verdade ou não, o certo é que, impulsionado pela introdução das operetas de Offenbach em Portugal, Eça chega a escrever o libreto de uma opereta (A Morte do Diabo), com música de Augusto Machado. Apesar da notícia de tal produção, até hoje tais documentos ainda não foram encontrados.
Ora, se entendermos que a prática estética literária de Eça, num enfrentamento directo com a sociedade burguesa lisboeta, como afirmou Maria Lúcia Dal Farra, era composta essencialmente de uma arte corrosiva e desmistificadora que pudesse se exercer por meio da caricatura, da ironia e do escárnio (1995), então, arriscamos uma via de leitura do romance eciano que passa necessariamente pelo viés da ironia, tomando como ponto de partida as referências musicais e operísticas, que, ao lado das leituras românticas efectuadas por Luíza, compõem o repertório ilusório da personagem com uma imaginação fadada a uma impossível concretização e a um fracasso irremediável. Além de Walter Scott e das suas cenas de castelos na Escócia, de A Dama das Camélias, e da idealização paradisíaca de um Paul Féval, O Primo Basílio apresenta um elenco invejável de óperas e citações musicais dos mais variados gostos e escolas líricas, passando por Verdi (La Traviata), Donizetti (Lucia di Lamermoor), Bellini (Norma e La Sonâmbula), Rossini (Il Barbieri di Siviglia), Meyerbeer (L’Africane), Gounod (Medje, Romeu e Julieta, e Fausto), Mozart (Missa di Requiem e Don Giovanni), incluindo ainda a peça para piano Oração a uma virgem, um Nocturno de Chopin, a valsa O Danúbio azul de Johann Strauss e a canção Malagueña. Com todos estes exemplos tirados do século XIX, sob a égide de uma produção musical romântica, Eça parece perpetrar, através de um rico aparato cultural, o seu questionamento crítico à estética romântica, compondo assim uma espécie de requiem para o próprio Romantismo». In Jorge Valentim, De sopranos e barítonos ou como Eça de Queiroz revisita a ópera do século XIX, Universidade F. de S. Carlos, Abril, Revista do Núcleo de Estudos de Literatura Portuguesa e Africana da UFF, volume 3, Nº 5, Novembro, 2010, Wikipedia.

Cortesia de RNELPAfricana/JDACT