«Bastariam
alguns minutos de recurso à memória para qualquer pessoa poder enumerar
histórias de amor célebres durante horas a fio. Da literatura ao cinema,
passando pela música ou pela pintura, o amor é, sem sombra de dúvida, o tema
mais explorado pelo espírito criativo do homem. Nenhum artista terá deixado de
transformar o amor em objecto de criação, ao ponto de muitas vezes se olhar
para este tema como um lugar-comum ou uma banalidade. No entanto, todos os que
já amaram sabem que o amor é um lugar, mas nada tem de comum. Entregámo-nos ao
desafio de recordar grandes romances portugueses. Sabemos que o amor não conhece
fronteiras ou culturas, mas ainda assim quisemos descobrir como se ama no nosso
país. Percebemos rapidamente que o manancial de histórias de amor que qualquer
um de nós poderia enumerar inclui poucos personagens que falem a nossa língua. Talvez
Pedro e Inês fossem mencionados, mas no meio de uma tabela onde Romeu e Julieta
seriam cabeças de cartaz. Então quais são as grandes paixões portuguesas? Procurámos
reunir 10 histórias que possam servir de referência a uma lusa forma de amar,
optando por convocar para este livro uma série de portugueses célebres, do
presente e do passado, cujas vidas amorosas foram excepcionais. Nalguns casos, é
um amor marcado pela tragédia, noutros pelo final feliz. Há paixões excessivas
ou marginais e romances cândidos. De Pedro I e dona Inês de Castro a José
Saramago e Pilar del Rio, de Camilo Castelo Branco e Ana Plácido a Francisco Sá
Carneiro e Snu Abecassis, pretendemos pintar a paisagem do amor no nosso país.
Neste livro encontrará 10 janelas onde se pode debruçar e admirar o amor
português.
Dinamene
e Luís de Camões. O Nome Sepultado nas Águas
1556.
As vigias ora estavam cobertas pela espuma, ora eram lavadas pelas águas. Aqui
e ali, pequenas algas transformavam-se em monstros marinhos, de braços trepando
aos tombadilhos, surgindo, do breu, para inundar o olhar dos marinheiros
aterrados. No convés, dois homens abraçados tremiam o frio do degredo, enquanto
cada um impedia o outro de se deixar dominar, a cada vez que caíam. Mesas e
cadeiras eram arrastadas, escadas abaixo, até aos calabouços, os restos de
comida alojados nas frestas da madeira dos soalhos, o imediato escondido na
cozinha para se aquecer e tentar fechar as feridas dos joelhos; as velas
rasgadas arrastavam as suas dores pela proa e ajudavam o assobio dos ventos a
tornar-se ainda mais aterrador. Dois ladrões agrilhoados, lutando contra as
correntes, gritavam a quem quer que os acudisse, mas o guarda, sentado do outro
lado da grade, chorando a sorte e o arrependimento, já não se poderia erguer da
sua alcova, com um mastro tombado a prender-lhe o ombro e os dedos trémulos da
mão ainda a tentar alcançar o molho de chaves que tilintavam trinta centímetros
à sua frente. Luís corria pela proa, atirado ao chão por uma vaga, para depois
se erguer, a esforço, avançar alguns metros e ser, de novo, lançado ao ar pelo
balancear da embarcação. Havia quem avistasse o capitão, ajoelhado perto do
leme, rezando sabe-se lá a que deus. O negro da noite não permitia que se
encontrasse a mão procurada, por entre a chuva, e a luz dos relâmpagos. Do
longe, se alguém o pudesse ver, aquele navio não passaria de uma folha seca da
árvore que morre, projectada nos ares e agitada ao vento, para ser mastigada
pelas águas e fazer-se nuvem, até reingressar no ciclo das coisas, para que
nascesse, talvez, flor noutro lugar qualquer. Mas essa história não é a de que
esta narrativa fala. Na história desta narrativa, não há qualquer redenção pela
naturalidade do tempo, na regeneração dos corpúsculos feitos órgãos, corações,
tomados novos seres vivos, alguns deles, humanos. A casca de noz que dançava
irracional a meio das ondas não teria um minuto para a salvação, em cada um dos
seus homens, no olhar das suas mulheres, uma a uma, chamada pelo nome próprio.
Luís corria, Luís corria mais um pouco, e era deitado ao chão, escorregava pelo
barco balanceado pela tempestade, era arrastado com outros homens pelos restos
dos abrigos, até que os ossos embatessem nos corpos daqueles que se haviam já
rendido. À Lua não seria permitido deixar qualquer sombra, nessa noite,
iluminar, por um segundo, qualquer coisa para o eterno, ajudar o capitão a
perceber a que imagem orava ou a parca visão de Luís a encontrar, naquele
inferno, a pele breve de Dinamene. Luís alcançou o caixa de madeira que
rodopiava no porão. A sua fechadura estava violentada e as primeiras folhas de
papel podiam já ver-se, espreitando pela tampa entreaberta, com os cantos amarelecidos
a serem tragados, rapidamente, pela humidade. Sentindo o casco abrir por
debaixo dos seus pés nervosos, agarrou o manuscrito junto ao peito, apertando
com toda a força que podia despender, e, gatinhando, gritando a voz rouca o
nome que mal conseguia soletrar, percorria os escombros da barcaça que boiavam
por entre a angústia. Do lado de lá da barreira de destroços, com os cães
presos por debaixo das traves latindo contra o temporal, a mulher esperava por
ele». In Alexandre Borges, Dez histórias de amor em Portugal, Editorial
Notícias, 2003, ISBN 972-461-4B5-9, Lisboa, Editora Casa das Letras-Leya, 2012,
ISBN 978-972-462-067-1.
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