«Deus criou o mundo em Vila Nova de Gaia, numa
tarde quente de Maio em 1930. E eu, quando uns quatro anos depois comecei a observar
conscientemente a Sua criação, não o fiz como seria de esperar, apenas com os
olhos que Ele me tinha dado à nascença, mas quase exclusivamente através dum
binóculo. Esse irresistível e constante desejo de querer ver tudo de mais perto
foi causa de grandes desesperos familiares, gritarias e alguns tabefes. Minha
mãe era obrigada a puxar às mãos ambas para me desgrudar da janela, onde eu, horas
imóvel a gozar a agitação do rio e do Porto, corria o risco de ficar raquítico.
Mas se me obrigavam a movimentar-me o perigo era ainda maior, porque poucos passos
dava sem ter o aparelho apertado contra os olhos, perdendo-se a conta das vezes
que caí por erro de cálculo ou pelo fascínio de ver que, sem dor, conseguia amputar
as pernas e fazer com que os pés me saíssem do peito. A prognose era que eu
acabaria cego. À mesa não o largava. No penico descobria através dele um
universo de formas imprevistas. Deformados pelo aumento, ou curiosamente diminutos,
o garfo e a faca perdiam a trivialidade doméstica, excitavam a imaginação.
Deitávamo-nos juntos e antes de adormecer eu percorria detalhadamente com ele
os recantos do tecto em busca de aranhas, moscas, centopeias, fascinado por
aquele mundo que existia indiferente à lei da gravidade ou, como eu dizia
então, andava no ar de patas para cima.
Mendigos ou visitas, a padeira, o
farrapeiro, os vizinhos que não estavam a par, quem batia à nossa porta
sobressaltava-se ao descobrir que, pela força e naturalidade do uso, o binóculo
parecia ter-se-me incrustado na cabeça como uma prótese. Esse maravilhoso instrumento
fora-me dado pelo meu avô José Maria que, ao que parece, o ganhara às cartas a
um patrão de traineira seu amigo. E com os tubos de cobre ele tinha de facto
qualquer coisa de marítimo, mas ao mesmo tempo parecia um brinquedo, pois as
minhas mãos abarcavam-no sem dificuldade e o seu poder de aumento não era excessivo.
Foi também o avô que me ensinou a desenroscar as lentes para, concentrando com
elas os raios do sol, fazer o milagre do lume sem fósforos. Queimei papéis,
queimei as unhas e a pele, a sola dos sapatos, o pêlo do gato, roupa posta a
secar, jornais, pontas de cigarro. Fiz um razoável número de buracos nos
caixilhos das janelas. Um dia, a ver se descobria de que ponto vinha o fogo,
pus-me a espreitar o sol através da lente, e só não ceguei do olho esquerdo
porque o anjo da guarda me desviou a mão a tempo. Ficou a cicatriz na pálpebra,
lembrança da primeira intervenção do sobrenatural, que a partir daí se deve ter
ocupado de mim a tempo inteiro. pois outra explicação não vejo para ter
escapado mais ou menos são aos perigos e trambolhões da minha infância.
O Cabeço são cinco ou seis casas de pedra
solta na crista do Malhão, serra que nasce na margem esquerda do Sabor, e que
pelo isolamento parece mais alta que os seus setecentos metros. Lugarejo
desabrigado, exposto a todos os ventos, sem árvore que lhe dê sombra nas
temerosas canículas, com a água longe, compreende-se mal que alguém jamais o
tenha escolhido para moradia. A paisagem é majestosa. Num redor de dezenas de
quilómetros avistam-se de lá aldeias e santuários, planaltos, encostas de terra
avermelhada, serranias que, conforme a hora, passam do amarelo aos tons mais
escuros do cinzento, ribeiros delgados que lembram cobras luzidias a
esgueirar-se pelos vales. Vê-se até longe na Espanha. Vê-se a serra de Bornes.
Vêem-se as montanhas que ficam para norte de Bragança». In José Rentes de Carvalho,
Ernestina, 2001, Quetzal Editores, Lisboa, 2009, 2014, ISBN 978-989-722-171-2.
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