As
lendas de Yelena Zaltana
«Presa
numa escuridão que me cercava como um caixão, não havia nada para me distrair
das minhas lembranças. Recordações vividas que aguardavam para me emboscar
sempre que a minha mente não estava focada. Mergulhada na escuridão, lembrava-me
das chamas ardentes que me acoitaram o rosto. Embora as minhas mãos houvessem
sido amarradas a uma estaca que se enterrava profundamente nas minhas costas,
eu já me havia recuperado do ataque. O fogo fora afastado pouco antes de
empolar a minha pele, contudo as minhas sobrancelhas e cílios há muito já
haviam sido chamuscados pelas labaredas. Apague as chamas!, ordenara a voz
áspera de um homem. Eu soprei o fogo com lábios rachados, ressecados pelas
labaredas e pelo medo. A humidade na minha boca desaparecera e os meus dentes
irradiavam calor como se tivessem sido assados num forno. Idiota, praguejou.
Não com a boca. Use a mente. Apague as chamas com a sua mente. Fechando os
olhos, esforcei-me para concentrar os meus pensamentos para fazer o inferno
desaparecer. Estava disposta a fazer qualquer coisa, por mais irracional que
pudesse ser, para persuadir o homem a parar. Esforce-se mais. Mais uma vez, o
calor passou perto do meu rosto, a luz forte cegando-me, estando eu com as
pálpebras cerradas. Coloque fogo no cabelo dela. Uma voz diferente instruiu. Parecia
mais jovem e mais ansioso do que o outro homem. Isso deverá encorajá-la. Vamos,
meu pai, deixe-me fazê-lo. O meu corpo sobressaltou-se de medo intenso ao
reconhecer a voz. Contorci-me para afrouxar as amarras que me prendiam,
enquanto os meus pensamentos se transformavam num zumbido monótono. Um sussurro
escapara da minha garganta, tornando-se mais alto, até percorrer todo o aposento
e extinguir as chamas. O estalo metálico da tranca despertou-me de sobressalto
da lembrança apavorante. Um facho pálido de luz amarelada cortou a escuridão,
correndo ao longo da parede de pedra quando a porta da cela se abriu. Deixei de
ver pela claridade quando o brilho do lampião me atingiu. Eu cerrei-os com
força enquanto me encolhia no canto. Mova-se, ratazana, ou vamos usar o
chicote! Dois guardas do calabouço prenderam uma corrente ao anel de metal que me
rodeava o pescoço e puxaram-me até ficar de pé. Cambaleei para a frente ante a
dor lancinante em redor do pescoço. De pé, com as pernas trémulas, senti os
guardas eficientemente a acorrentarem as minhas mãos para trás e algemaram os meus
pés. Evitei olhar para a luz bruxuleante enquanto me conduziam pelo corredor principal
do calabouço. Senti uma baforada de ar viciado e rançoso no rosto. Os meus pés
descalços arrastavam-se por poças de dejectos que não podiam ser identificados.
Ignorando os chamamentos e os gemidos dos outros prisioneiros, os guardas desaceleraram
o passo, contudo o meu coração sobressaltava-se a cada palavra. Há, há, há...
Tem alguém que vai balançar na ponta da corda. Um baque, um estalo e a última
refeição vai deslizar pelas suas pernas! Uma ratazana a menos para alimentar. Levem-me!
Levem-me! Eu também quero morrer! Nós paramos. Através das pálpebras semicerradas
vi uma escadaria. Na tentativa de colocar o pé no primeiro degrau, tropecei nas
correntes e caí. Os guardas levantaram-me à força. A rugozidade dos degraus de
pedra cortaram-me a pele exposta dos braços e das pernas. Após ser arrastada
através de duas grossas portas de metal, fui atirada para o chão. A luz do sol
feria os meus olhos. Eu fechei-os com força e lágrimas rolaram pelas minhas
faces. Era a primeira vez, em muitas estações, que eu estava vendo a luz do
dia. É agora, pensei, começando a entrar em pânico. Contudo, saber que a execução
daria fim à minha miserável existência no calabouço acalmou-me. Novamente sendo
colocada de pé à força, segui cegamente os guardas. O meu corpo contorcia-se
devido às picadas de insectos e de dormir no feno sujo. Eu fedia como uma
ratazana. Recebendo apenas uma pequena porção de água, jamais a desperdicei com
banhos. Assim que os olhos se acostumaram à luz, olhei em redor. As paredes estavam
nuas, sem os fabulosos candeeiros de ouro e as bem trabalhadas tapeçarias, que outrora
decoravam os corredores principais do castelo. O centro do piso de pedra fria
estava desgastado de tanto uso. Provavelmente estávamos viajando ao longo de
corredores escondidos, usados apenas pelos criados e guardas. Quando passámos
por duas janelas abertas, olhei para fora com uma voracidade que nenhum
alimento seria capaz de saciar. O verde vibrante da relva fez os olhos doerem.
As árvores tinham folhagem. Flores cobriam os trilhos e enchiam canteiros. A
brisa fresca cheirava como um perfume caro, que eu inspirei profundamente». In Maria
V. Snyder, Estudos sobre Veneno, 2005, As lendas de Yelena Zaltana, tradução de
Maurício Araripe, ePub, Editora HR, Harlequin Enterprises, Rio de Janeiro,
2011, ISBN 978-853-980-460-3.
Cortesia
de EditoraHR/HarlequinE/JDACT