Milão.
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«Está
aberta a caça aos hereges e os inquisidores povoam as ruas da cidade. O cadáver
de uma jovem mulher aparece a boiar nas águas do canal do Vettabbia, com o
corpo dando sinais de parto recente. Só que da criança nem rasto. Passados 17
anos, alguém vai interrogar-se sobre o que realmente terá acontecido naquela
noite. Arnolfo Sala, abade do mosteiro de San Simpliciano, atormentado por um
sonho recorrente e com suspeitas antigas que só ele conhece, encarrega o frade
Matthew de investigar o caso. Pelas ruas de uma Milão abalada pela perseguição
aos hereges e pela luta contra o imperador Frederico II, o frade inicia a sua
investigação. Por lugares ainda hoje reconhecíveis, como o Broletto, centro
político e comercial da cidade, o bosque de Quadronno ou o Hospital do Brolo,
Matthew entrecruza as histórias de Isaac, médico judeu, e da sua bela filha
Raquel. Mas só o encontro com Guglielma, uma vidente e mística malquista aos
olhos da igreja milanesa, assinalará indelevelmente a consciência do frade,
indicando-lhe o caminho a seguir para concretizar a sua missão e resolver o
mistério. A água turva do canal formava remoinhos escuros que, aos poucos, se
alargavam em ondas lentas e preguiçosas; entre os seixos da margem, as ervas,
miseráveis, absorviam, a custo, as franjas daquela espuma oleosa. As bolas
esbranquiçadas brilhavam um instante apenas antes de explodir, depositando-se,
em seguida, sobre as últimas babas de água. Segurando entre os dentes um
pauzinho de madeira, um cão de pêlo ruivo corria ao longo dos diques, seguido
por um miúdo que o chamava aos berros. O animal virava-se de vez em quando, como
que para avaliar a distância que o separava do seu pequeno dono, retomando,
seguidamente, a corrida. Depois de, cauteloso, ter evitado as rodas de uma
carroça carregada de mercadorias, o animal parece ter-se acalmado e, tendo
largado o pauzinho, começou a descer, com todo o cuidado, na direcção do canal,
atento para não escorregar por entre os seixos viscosos. Com a língua de fora,
sedento, estava prestes a tocar a água quando, de repente, o pêlo se lhe eriçou
e a cauda lhe pendeu. Ficara imóvel como uma escultura de pedra, com o focinho
esticado; só as narinas vibravam, farejando freneticamente a superfície da
corrente. De seguida, porém, um latido fortíssimo fez-se ouvir provindo daquela
goela. O miúdo, que já estava quase a apanhá-lo, parou repentinamente,
assustado. O animal latiu de novo, mas o som transformou-se desta vez e quase
subitamente num ganido doloroso.
O
que se passa, miúdo? O que tem o teu cão? A voz era de alguém que se aproximara
por detrás dele. O miúdo virou-se erguendo os olhos para o homem alto que se
lhe dirigira; a boca delicada e os olhos claros sorriam benévolos naquele rosto
escurecido pelo sol e as mãos calejadas seguravam um saco vazio, engordurado e
rôto. O rapazinho não respondeu, atento, de novo, aos ganidos do cão, que, a
passos cautelosos, continuava a descer em direcção à água. Quieto, Martino! Pára!
O animal obedeceu, sem, todavia, desistir do seu lamento sonoro. Aterrado com a
possibilidade de o cão ser levado pela corrente, o miúdo correu então para o
dique, aos tropeções, por entre os seixos. A um palmo do cão, deu um último
salto e segurou-o de repente pelo rabo, deixando-se depois cair de joelhos
sobre os seixos. O homem alto, que o seguira, parou mesmo atrás dele. Martino,
pára, pára já! Pode saber-se o que te deu? Nunca te vi nessa loucura... As
palavras de reprovação do miúdo soavam assustadas: o animal tremia, mantendo, todavia,
as patas da frente firmemente plantadas na água. As narinas dilatadas
farejavam, convulsas, o pelo mantinha-se totalmente eriçado, escondendo quase
completamente a forma das orelhas. O homem alto aproximou-se: depois de ter
pousado uma mão protectora nas costas do miúdo, observou atentamente o canal,
percorrendo a superfície com os olhos. A sua já longa familiaridade com aquela
enseada do Vettabbia havia-lhe ensinado que a corrente preguiçosa e suja
transportava, por vezes, as coisas mais horríveis: o seu trabalho de
descarregador de barcos habituara-o a encontrar na margem todo o género de
lixo, desde excrementos ali depositados há pouco a carcaças de animais mortos.
Era exactamente este último e penoso tipo de lixo que temia, considerando o
comportamento do cão ao aproximar-se da água. Mas preparava-se já para levar o
miúdo de volta, ajudando-o a arrastar-se atrás do seu teimoso companheiro de
brincadeira quando os seus olhos se fixaram num ponto do canal relativamente perto
do local onde os barcos atracavam. À superfície, mesmo à tona da água, boiava
qualquer coisa estranha: parecia uma massa esbranquiçada, comprida como um
grande peixe mas não tão compacta. Aparecia e desaparecia com os lentos
movimentos da corrente, arrastando-se atrás de uma espécie de emaranhado de
algas escuras. O homem atentou melhor semicerrando os olhos para se proteger do
reflexo do Sol: quando a mensagem inequívoca que as pupilas lhe enviaram lhe
chegou à mente, um vómito incontido saiu-lhe da garganta. Apoiando as mãos nos
joelhos, suspirou profundamente e virou-se: o miúdo fixava-o, estupefacto com a
sua súbita palidez. Vai-te embora, vai, pequeno, volta para casa... Já!
Espavorido mais pela tremura da voz do que pelo tom imperativo do homem, o
miúdo afastou-se, agarrando o cão pelo cachaço e virando-se para trás a cada
passada. Só quando o viu já em segurança no dique e depois a caminhar pela
estrada fora, o homem ousou voltar a olhar para o canal. O cadáver
aproximava-se da margem, lentamente. A forma do corpo ia-se delineando aos
poucos: ora aparecia uma perna a flutuar, ora um pé, enquanto o que julgara ser
um intrincado de algas se alargava, acariciado pela corrente, num longo velo de
cabelos negros». In Valeria Montaldi, O Senhor do Falcão, 2003, tradução de Maria Irene
Carvalho, Editorial Notícias, Editora Casa das Letras, 2005, ISBN
978-972-461-618-6.
Cortesia
de EditorialNotícias/ECdasLetras/JDACT