Um
amor em Sevilha
«Ele
sabia contar. De costas para a janela do pequeno apartamento onde então vivia,
um braço na mesa, as pernas a descansar num banco, fazia reviver, naquele interior
soturno onde a luz ficava acesa o dia inteiro, o tumulto de Madrid nos anos antes
da Guerra Civil. Não me diga! Unamuno? Don Miguel, pois claro! E vinham as anedotas,
os bons ditos, comezainas, passeatas, as horas de tertúlia no Ateneo. Os
personagens postos ali diante de mim, mais que vivos: Baroja, Valle-Inclán,
Lorca, Gómez de la Serna, Miró... O pintor? Não. O escritor. O irmão. Incomparável,
aquela maneira de reviver. A vivacidade emprestada aos diálogos, o mimetismo
com que, ao reproduzir um gesto, deixava de ser ancião para retornar à pele do jovem
que então tinha sido. Grande gente. Uma época extraordinária. Mas porque não escreve
tudo isso? Além de não dar resposta, nesses momentos ele nem sequer me
encarava, certo de que o tempo se encarregaria de me fazer avaliar a insensatez
da proposta. De facto, mas isso vim a aprendê-lo muito mais tarde, quase só o que
as biografias esquecem ou escondem vale a pena ser contado.
Quando
nos despedíamos eu saía com a impressão de ter sido inconveniente como amigo,
mal-agradecido como confidente. Apenas numa ocasião me respondeu ele com um
fatigado, para quê? A quem é que estas coisas poderiam interessar? E, antes de
eu cair em pomposidade e cumprimentos, o seu encolher de ombros arrumou definitivamente
a questão. Mas não era apenas a extraordinária maneira de fazer reviver os
personagens e as horas: a intimidade que ele tinha tido com os homens e os acontecimentos
mais importantes desse tempo tornava a narrativa fascinante. Os detalhes da sua
vida não entram aqui, e dela só usarei o indispensável para esta história verdadeira.
Português do Minho exilado em Madrid, tinha casado com uma rapariga espanhola e
havia poucos meses que era pai quando rebentou a Guerra Civil. A combinação das
ideias e das amizades levou-o a alinhar com os republicanos, logo encarregado de
missões que o obrigavam com frequência a ausentar-se da família, cruzando a Espanha
sob os disfarces mais variados, ora padre, vendedor ambulante, fotógrafo... Um
dia, tendo-se dado por médico, mostraram-lhe um soldado que apodrecia de gangrena
num palheiro e, ao acordar do desmaio, viu-se na prisão.
As suas
recordações, temperadas pela experiência, levavam-no a pintar um quadro sóbrio da
tragédia que fora a Guerra Civil, não esquecendo de apontar que tinha encontrado
lealdade em ambos os campos; que torcionários, assassinos, os corruptos e os judas,
não apareciam exclusivamente entre o inimigo. Pouco capaz de fanatismo, devera
a sua sobrevivência mais ao acaso do que à capacidade de compreender as razões bizantinas
que opunham os clãs, ou de penetrar motivações políticas que desafiavam o raciocínio.
Em determinado momento tivera a cabeça posta a prémio pelos franquistas, os
anarquistas, os comunistas de El Campesino e pelos nazis da Legião Condor. Duas
vezes foi alvejado a tiro, escapando ileso, e quando numa terceira o deixaram
por morto, a bala só lhe tinha trespassado o ombro. Ao fugir em Janeiro de 39, vendo-se
são e salvo do outro lado dos Pirenéus, ele, que desde menino esquecera o rezar,
viu-se de joelhos a agradecer o milagre». In José Rentes de Carvalho, Os lindos braços
da Júlia da farmácia, 2011, Quetzal Editores, Lisboa, 2014, ISBN
978-972-564-967-1.
Cortesia
de QuetzalE/JDACT