quarta-feira, 2 de março de 2016

Teresa Távora. A Amante do Rei. Sara Rodi. «Mas como pode alguém que se diz seguidor dos princípios cristãos, da humildade e do amor pelo próximo ser tão ávido de poder e de riqueza, passando por cima de quem for para o obter?»

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«Consiste o livre-arbítrio em voluntariamente cumprir o fado». In Agostinho da Silva

31 de Março de 1738
«(…) Vários outros nobres desfilavam os seus brasões, na arena, mas o dos Távora era inevitavelmente um dos que mais chamava a atenção, pelo poder perdurado e alargado no tempo, que tantas invejas lançava já nessa altura. Os Távora uniam-se através de laços matrimoniais com os duques de Aveiro e de Cadaval, os marqueses de Alorna e os condes de Atouguia, Ribeira Grande e Vila Nova. Títulos e poder era tudo quanto deixava sequiosa dona Leonor Távora, e eu, porque nada disso me aliciava superiormente, era um empecilho no seu caminho. Seria um dia minha a responsabilidade de educar os meus filhos, netos dela, para que eles fossem grandes militares ou funcionários da casa real. Seria minha a responsabilidade de os casar convenientemente, fortificando com novos títulos e património o marquesado, que dona Leonor ainda tinha esperança de transformar em ducado, enquanto vivesse. Mas eu não era como ela. Não tinha qualquer das suas aspirações. Não adormecia e acordava a pensar em poder e glória. Se algo me roubava o sono, de noite e de dia, era só a vontade de prazer, fonte de bem-estar que uns chamavam efémero, mas que tinha tanto de efémero como o bem-estar provocado pelo poder e glória, que podia igualmente acabar de um momento para o outro, como a História viria a prová-lo.
À apresentação dos Guias seguiram-se as escaramuças entre cavaleiros, que me aborreciam. Dissera a Pelágia que perderia a virgindade nesse dia, um pouco à toa, como quem diz outra coisa qualquer que decida, mas agora convencera-me de que só isso me roubaria àquele tédio que sentia. É certo que umas festas em honra de uma princesa eram sempre preferíveis aos rotineiros dias da corte, e por esses dias as festas até abundavam, em quantidade e qualidade. João V era um rei de obra feita, toda ela magnânima, e nessa altura ainda mantinha suficiente imaginação para conceber festejos condignos, ao contrário do que viria a suceder mais tarde, a partir de 1742, quando o local mais animado da cidade passou a ser a Patriarcal de Lisboa, onde a nobreza ia exibir os fatos e os penteados aos domingos e dias santos. Fora estas missas cantadas, absolutamente entediantes, pouco mais passou a haver, porque João V começara a não ter saúde para muito mais, e proibiu mesmo tudo aquilo que pudesse vir a roubar a saúde moral, dos seus súbditos. A saúde do rei fora-se nas festas privadas no Convento de Odivelas, onde deixou três filhos bastardos [(eram três os Meninos de Palhavã, nome dado aos três filhos bastardos de João V: António de Portugal (1714-1800), filho de dona Luísa Inês Antónia Machado Monteiro, Gaspar (1716-1789, que viria a ser arcebispo de Braga, em 1758), filho de dona Madalena Máximo Miranda, e José de Portugal (1720-1801, também arcebispo de Braga e inquisidor-geral em 1758), filho de madre dona Paula Teresa Silva; acabaram os três exilados no Buçaco por altercações com Sebastião José Carvalho Melo. João V terá tido também outros filhos bastardos de damas da corte, mas só estes foram reconhecidos]. Dizia-se nessa altura mais devoto, dedicado à oração e ao jejum das carnes, mas sabia-se que o rei perdera, sim, a sua virilidade, à custa dos afrodisíacos que tomara para os grandes assaltos às meninas de Odivelas (esta é apenas uma hipótese para justificar o débil estado de saúde do rei, nos últimos anos da sua vida; diz-se também que ele seria epilético, e que o que aconteceu em 1742 foi um ataque mais forte que lhe roubou o vigor, descrito assim por uma testemunha: um estupor o privou dos sentidos e ficou teso de toda a parte esquerda, com a boca à banda; certo é que, a partir deste momento, se tornou um rei ainda mais devoto e defensor da moralidade do reino, proibindo os festejos mais pagãos, como touradas, bailes e óperas, que voltaram a registar-se, e em abundância, no reinado do seu filho José I). E que a santa hipocrisia lhe valha!
Nunca tive paciência para falsos pudores e moralidades hipócritas. E por isso odiava tanto a nobreza em geral, e a minha futura sogra em particular. Dela e de meu irmão Francisco não se conheciam aventuras extraconjugais nem indecências visíveis, é certo. Nessa matéria pareciam ter uma vida condizente com o que apregoavam. Mas como pode alguém que se diz seguidor dos princípios cristãos, da humildade e do amor pelo próximo ser tão ávido de poder e de riqueza, passando por cima de quem for para o obter? Era isso que me entediava nas festas faustosas de João V a falta de uma verdadeira coerência nas pessoas que as frequentavam. As palmas que se batiam numa tourada eram as mesmas que se faziam ouvir num auto de fé, onde uns tantos homens e mulheres eram atirados à fogueira por acreditarem em algo diferente (ou não acreditarem em coisa nenhuma). Os fatos com as suas rendas e brocados, eram os mesmos. Assim também os gestos e as gargalhadas. Era aquela a moral dos nossos dias, que me apetecia questionar todos os dias. Chocasse quem chocasse, porque nessa altura ainda não tinha consciência de que a ousadia tinha o seu preço, e podia ser um preço alto. Em que pensa, Teresa? Tenho-te visto tão ausente, durante os torneios...» In Sara Rodi, Teresa Távora, A Amante do Rei, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-626-482-6.

Cortesia EsferaLivros/JDACT