«Onde será que isso começa a correnteza sem
paragem o viajar de uma viagem a outra viagem que não cessa? In Caetano Veloso
Plácido
Domingo contempla o Mandovi
«As
gralhas, lá fora, ralham umas com as outras. Arranham a noite numa algazarra
áspera. Viro-me no colchão tentando encontrar um pedaço fresco de lençol. Sinto
que estou a ser cozinhado ao vapor como se fosse um legume. Salto da cama e
sento-me no parapeito da janela. Se fumasse, nunca fumei, seria agora a altura
certa para acender um cigarro. Assim, fico a olhar a enorme figueira (Ficus
benghalensis), no quintal, tentando seguir entre as sombras o combate das
gralhas. Não sopra o alívio de uma brisa. A noite, porém, girando por sobre
Pangim imensa e límpida, com a sua torrente de estrelas, refresca-me a alma. Penso
nesta frase e não gosto dela. Está uma noite de cristal, funda, transparente, e
isso produz, realmente, uma certa sensação de frescura. Acho que não gosto
nesta frase é da palavra alma. Alma parece-me uma palavra muito grande. Já toda
a gente abusou dela, poetas medíocres, filósofos, guerreiros, conspiradores,
mas ainda assim continua enorme. Risco a alma e mantenho as estrelas. Nas
grandes cidades não é possível ver as estrelas. Volto ao quarto e ligo o
computador. A frase, O que faço eu aqui?, título de uma recolha de
textos de Bruce Chatwin, desliza lentamente no écran. Uso-a desde há muito como
cortina de protecção. Nesta cidade remota, à uma hora da madrugada, parece-me
uma boa pergunta. Uma vez uma jovem jornalista quis saber porque é que eu
escrevia. Os jornalistas menos experientes costumam perguntar isto a quem
escreve, para ganhar tempo, enquanto pensam no que vão perguntar em seguida. Há
quem assuma, com ar trágico, que a literatura é um destino: escrevo para não
morrer. Outros fingem desvalorizar o próprio ofício: escrevo porque não
sei dançar. Finalmente existem aqueles, raros, que preferem dizer a verdade:
escrevo para que gostem de mim (o português José Riço Direitinho), ou, escrevo
porque não tenho olhos verdes (o brasileiro Lúcio Cardoso). Podia ter respondido
alguma coisa deste género mas decidi pensar um pouco, como se a pergunta fosse
séria, e para minha própria surpresa encontrei um bom motivo: escrevo porque
quero saber o fim. Começo uma história e depois continuo a escrever porque
tenho de saber como termina. Foi também por isso que fiz esta viagem. Vim à
procura de uma personagem. Quero saber como termina a história dela.
Há
algum tempo que pretendo contar a história de Plácido Domingo. Hesitei em fazer
isso antes porque já existe o Plácido Domingo, o tenor, mas nunca me conformei.
Certos nomes deviam ser obedecidos, isto é, deviam implicar um destino. Escrevi,
há três ou quatro anos, um conto que começava assim. Muita gente me perguntou
se a história era verdadeira. Costumo insinuar, quando a propósito de outras
histórias me colocam idêntica pergunta, que já não sei onde ficou a verdade,
embora me recorde perfeitamente de ter inventado tudo do princípio ao fim.
Naquele caso fiz o contrário. Tretas, menti, pura ficção. Disse
isto porque queria encontrá-lo. Inventei um nome para ele, ou nem isso, dei-lhe
o nome de outro homem. No meu conto, Plácido Domingo, um velho de pele dourada,
seco, gestos demorados, a fala antiga e cerimoniosa de um cavalheiro do século
XIX, vive em Corumbá, pequena cidade nas margens do Rio Paraguai, junto à
fronteira com a Bolívia. Nessa altura, é claro, eu já sabia que Plácido Domingo
se havia escondido em Goa. Imagino-o a descer todas as tardes a mesma rua
deserta. Vejo-o sentar-se no café, junto ao cais, de frente para as largas
águas do rio. O dono do café, um índio melancólico, cumprimenta-o sem se mover:
boas tardes señor Plácido! O velho responde inclinando levemente a cabeça. Com
as lentas mãos desdobra o lenço e limpa o suor da testa. O tempo enrosca-se aos
seus pés como um cachorro vadio. Plácido Domingo, o meu personagem, esconde,
debaixo do grande sol de Corumbá, sob a mansidão de um quotidiano sempre igual,
um antigo segredo. Na cidade ninguém sabe de onde ele veio. Chegou há vinte
anos num vapor cansado, alugou um quarto no Hotel Paraíso, e por ali ficou. Uma
vez por semana Plácido Domingo cruza a fronteira e vai até Puerto Suarez.
Encontraram-no uma vez remexendo velhos trastes, cobertos de poeira, num
sombrio barraco de bugres, e foi quanto bastou para que dissessem que se
dedicava a comprar e a vender as famosas cabeças reduzidas dos jívaros.
Insinuaram-se até coisas piores. Sentado na sua cadeira Plácido Domingo espera
que o índio lhe traga, como todas as tardes, o caldo de piranha. Leva devagar a
colher à boca e deixa que o calor lhe dilate o peito. Revigorado, abraça-se à
bengala e fica ali, a olhar o rio, à espera que a noite se deite por inteiro,
como uma manta de estrelas, sobre os sobrados tristes, a imensa planície
inundada, a áspera gritaria dos pássaros. Foi naquele café, precisamente àquela
hora, que eu o encontrei». In José Eduardo Agualusa, Um Estranho em
Goa, 2000, Livros Cotovia, Lisboa, colecção Série Oriental, Viagens, 2000, Fundação
Oriente, ISBN 978-972-842-385-8.
Cortesia
FOriente/LCotovia/JDACT