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«Escuta lá, de quem é
que tu és filho? Sou o filho do Peixoto da serração e da Alzira Pulguinhas»
Janeiro de 1984
«(…) A caminho da escola, os cachopos iam todos a
coçar as ramelas e a torcer o nariz. Estavam ensonados e rabugentos com aquela
manhã tão cinzenta, tão sem consideração pelas suas arrelias. Já na sala,
arrumaram-se ao aquecedor de gás, a professora deu licença, e deram soltura às
suas teorias. Forasteira, a professora ficou banzada com as cabeças dos
cachopos e, nessa manhã, mandou-os para o recreio mais cedo. Achou que
precisavam de correr. De madrugada, no alto da rua de São João, os homens e as
mulheres firmaram-se e subiram com desenvoltura para os reboques dos tractores.
E 1á seguiram para o campo sem grande paleio, sisudos, sentados em fardos de
palha, a agitarem-se conforme os buracos da estrada e, se não fosse pelo cheiro
cinzento a enxofre, quase a duvidarem que a noite anterior tivesse acontecido. As
velhas, viúvas ou não, vinham para a porta de casa com a sua vassoura de mato.
De rabo para o ar, começavam a varrer. Passava um instante e levantavam a
cabeça para olhar em redor. Queriam dar fé e perceber se havia novidades. Esta
incerteza demorou até meio da manhã.
Na torre da igreja, os sinos deram as dez.
Estava a rodar essa música de sinos em perfeita afinação quando o Cebolo entrou
de motorizada na vila. Era um motor preguiçoso, a gemer uma surdina de besouro,
a falhar nas subidas, incerto, espécie de motor bêbado. Trazia o capacete
enfiado na cabeça, mas levava a correia desapertada. Passava de olhos muito
abertos, um mais aberto do que o outro. Quem o via, tão compenetrado,
suspeitava. Quando parou no terreiro e pôs â motorizada na espera, os homens
que estavam à porta do café do Chico Francisco ficaram só a olhar para ele. Com
vagar, aproximou-se, deixou que passasse um momento e deu-lhes a notícia. Tresandava
a uma mistura de enxofre e borregum. Ficaram doidos. Dois deles pegaram logo
nas motas e seguiram juntos. Os outros espalharam-se: um desceu pela rua da
sociedade, outro desceu pela rua da Fonte Velha, outro subiu em direcção ao
Alto da Praça, outro foi para o lado do São Pedro. O Cebolo pouco se mexeu. A
vitrina do café do Chico Francisco estava coberta por um tapume velho de
contraplacado. Esse fundo deu ainda mais gravidade ao olhar do Cebolo. A
notícia foi alastrando a partir do terreiro, como um incêndio, ou como água da
chuva nas regadeiras, ou como a notícia de uma morte, ou como uma lata de tinta
entornada.
Quando voltou para o campo, aturando os
caprichos da motorizada, o Cebolo passou por grupos que avançavam a pé e de
bicicleta. Foi ultrapassado por motas mais adolescentes e, mesmo à beira de
chegar, foi ultrapassado pelo automóvel do doutor Matta Figueira. Quando essa
nuvem de pó se desfez, o Cebolo teve de parar a motorizada para acreditar no
que estava a ver. Dezenas de pessoas, centenas talvez, enchiam a herdade do
Cortiço, atravessavam-na a passos largos. Contra o ligeiro abrandamento das
ervas altas, dirigiam-se à cratera. Muitos rodeavam-na já. Julgando-se
abandonadas, as cabras do Cebolo admiravam-se com aquele movimento de gente, levantavam
um olhar de medo, coitadinhas, podiam mesmo ensaiar uma fuga espantada se
alguém fizesse um gesto mais brusco, mas não chegavam a sair do lugar.
O terreno apresentava uma cratera redonda e
inédita: um círculo com um diâmetro de uma dúzia de metros, mais ou menos,
abatido a cerca de um metro abaixo do resto da terra. Era como se um martelo
gigante tivesse afundado aquele disco. No centro, a coisa sem nome, imóvel,
vaidosa, a exibir-se. Aqueles que tinham descido o degrau e feito menção de se
aproximar, não aguentaram o calor. Mesmo à distância, a coisa sem nome difundia
um calor ardente, que corava as faces e secava a boca. O cheiro a enxofre era
quase irrespirável. Muitos tapavam a boca com lenços de assoar ou com a palma
da mão. Ali, nunca ninguém tinha visto nada que pudesse comparar com aquilo.
Rodeado por alguns dos seus filhos, o Cabeça estava lá, embasbacado. Se calhar,
é um bocado de sol, disse». In José Luís Peixoto, Galveias, Quetzal
Editores, Lisboa, 2014, ISBN 978-989-722-179-8.
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