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Depois de, com um inclinar respeitoso da cabeça, perguntar se o meu pai necessitava
de mais alguma coisa e de ter obtido uma resposta negativa, Petrossian e o neto
que ele andava a treinar com vista a ocupar o seu lugar na nossa casa deixaram-nos
a sós. Passou algum tempo antes que alguém falasse. Eu já me esquecera do
quanto este espaço podia ser calmo, bem como da rapidez com que me acalmava os sentidos.
Quereis saber os motivos que fizeram com que Yusuf Pasha fosse mandado para
aqui há duzentos anos? Curiosa, acenei afirmativamente, incapaz de ocultar a excitação
que sentia. Agora que era mãe de dois filhos, era considerada como sendo suficientemente
madura para escutar a versão oficial. O meu pai deu início ao discurso
empregando um tom de voz que tanto tinha de íntimo quanto de autoritário, como se
os acontecimentos que estava a descrever tivessem ocorrido na semana anterior e
ele os tivesse presenciado, ao invés de terem tido lugar há duzentos anos, num palácio
nas margens do Bósforo, em Istambul. Contudo, enquanto falava, fez questão de
ignorar por completo o meu olhar. Os seus olhos cravaram-se fixamente no rosto do
pequeno Orhan, ocupados a registar a reacção da criança. Talvez o meu pai estivesse
a recordar a sua própria infância e a forma como escutara a história pela primeira
vez. Quanto a Orhan, fora enfeitiçado pelo avô. Os seus olhos brilhavam de divertimento
e de antecipação enquanto o meu pai assumia a entoação larga e exagerada de um
contador de histórias da aldeia.
Tal como
era seu desejo, o sultão mandou chamar Yusuf Pasha ao fim da tarde. O nosso
antepassado chegou junto dele e esboçou as suas vénias. Crescera junto com o sultão.
Conheciam-se bem. Uma criada colocou uma taça de vinho à sua frente. O sultão pediu
ao amigo para recitar um poema novo. Nesse dia, Yusuf Pasha sentia-se esquisito.
Ninguém sabe porquê. Ele era de tal maneira um cortesão perfeito que, normalmente,
todo e qualquer pedido do seu soberano era tratado como uma ordem vinda do céu.
O seu raciocínio era de tal maneira veloz que conseguia inventar e recitar uma quadra
no preciso instante em que esta lhe era pedida. Mas não foi assim que as coisas
se passaram naquela tarde. Ninguém sabe porquê. Talvez o tivessem obrigado a abandonar
o leito de uma amante e o facto o fizesse sentir zangado. Talvez estivesse pura
e simplesmente farto de ser um cortesão. Talvez estivesse a sofrer de uma
profunda indigestão. Ninguém sabe porquê.
Quando
o sultão constatou que o amigo permanecia em silêncio, sentiu-se genuinamente
preocupado. Quis saber como estava ele de saúde. Ofereceu-se para mandar chamar
o seu próprio médico. Yusuf Pasha agradeceu-lhe, mas recusou a oferta. Olhou em
volta e outra coisa não viu para além de escravas e de eunucos. Apesar de não haver
nada de novo no facto, o certo é que, naquele dia, isso perturbou o nosso
antepassado. Ninguém sabe porquê. Ao fim de um longo silêncio, pediu ao sultão que
o deixasse falar, sendo-lhe tal direito concedido. Ó grande governante e fonte
de todo o saber, sultão do mundo civilizado e califa da nossa fé, este vosso criado
implora-vos perdão. A musa inconstante abandonou-me, e hoje é impossível que qualquer
verso entre nesta cabeça vazia. Com a vossa permissão, esta noite assumirei o papel
de contador de histórias, mas imploro a vossa majestade sublime que escute com atenção,
uma vez que aquilo que estou prestes a dizer corresponde à verdade. Por esta altura,
a curiosidade do sultão não podia ser mais genuína, e toda a corte esboçou um
movimento à medida que se inclinava no intuito de escutar as palavras de Yusuf Pasha.
Quinhentos e trinta e oito anos antes do nascimento do santo cristão, Jesus, existia
um poderoso Império na Pérsia. No seu trono sentava-se um grande rei, que respondia
pelo nome de Ciro. Nesse ano auspicioso, Ciro foi proclamado rei dos reis na Babilónia,
uma região que é agora governada pelo nosso grande e sábio sultão. Nesse ano, o
Grande Império Persa parecia invencível. Dominava o mundo. Era admirado pela sua
tolerância. Os persas aceitavam todos os credos, respeitavam todos os costumes e,
nos seus novos territórios, adaptavam-se às diferentes formas de governo. Tudo parecia
correr bem. O Império florescia, lidando com os inimigos como um homem enxota
uma mosca.
Duzentos
anos depois, os herdeiros de Ciro tinham-se tornado peões nas mãos dos eunucos e
das mulheres. Os sápatras do Império mostravam-se agora desleais. Os seus oficiais,
corruptos, insensíveis e ineficazes. As enormes riquezas da Mesopotâmia iam salvando
o Império do colapso, mas, quanto mais se adiava a queda, maior e mais esmagadora
esta foi no momento em que acabou por se dar. E foi assim que os gregos
adquiriram influência. A sua língua espalhou-se. E foi assim que, muito antes
do nascimento de Alexandre, a rota das suas conquistas foi antecipadamente traçada».
In
Tariq Ali, A Mulher de Pedra, 2000, tradução de Lucília Rodrigues, Publicações
Europa América, Contemporânea, 2002/2003, ISBN 972-105-125-X.
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