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Ora, eu não louvo esses heróis que mantêm um contrato utilitário, seja de
direito ou de facto, só porque do ponto de vista social, familiar ou material o
consideram cómodo ou proveitoso. Eu não seria capaz de aceitar uma situação
desse género, que consome vidas e destrói afectos. Mas também não aceito o
contrário, ou, para ser mais rigoroso, dificilmente consigo aceitar, nem sequer
compreender, o propósito de se pôr fim a uma relação sustentada, às vezes
perfeita, por causa de um ou de alguns factos de consequências mínimas. Pergunta-me
se há relações perfeitas?... Bem, perfeitas não digo, mas quase perfeitas,
seguramente. A minha era assim; uma relação em que tudo parecia certo e se me
afigurava definitivo. Era como se ela e eu vivêssemos para além dos nossos próprios
limites; como se estivéssemos sempre a morrer, apaixonados, para renascermos
outros, melhores ainda, em cada manhã de um novo dia. Nada falhava no percurso discreto
das nossas vidas. A dor de um era a dor do outro; a alegria de um era a alegria
do outro, sempre celebrada no entusiasmo do compromisso e da partilha. Por isso
pensava eu que tudo aquilo a que nos entregávamos de corpo e alma, tão vasto,
tão intenso, iria ser eterno, esquecendo-me, ou provavelmente não sabendo
ainda, de que só são eternos os instantes que vivemos. Por outro lado, à
excepção dos últimos meses de convivência, sobre os quais lhe falarei mais adiante,
eu nunca havia dado conta de qualquer gesto de renúncia por parte dela, e
também essa circunstância me levava a supor que jamais seria capaz de me
esconder uma aventura ou de disfarçar uma intenção.
Até que um dia, lembro-me de que
era uma tarde de Verão, descobri que eu não era, afinal, o único homem da sua vida.
E esse foi o grande choque; um choque de que ainda me não recompus, que me
abalou e destruiu. Mas por favor, doutora, não me peça para lhe descrever o que
senti nessa hora, ou na seguinte, ou nas que lhe sucederam, porque seria incapaz
de o fazer. Aliás, nem sequer me consigo recordar de certos pormenores ocorridos
naquela altura, nem do que disse ou do que pensei quando uma amiga de ambos,
talvez até mais dela do que minha, me telefonou de propósito para me revelar o
segredo. Pouco ou nada retenho dessa conversa, repito. Apenas me lembro de que
num primeiro momento cheguei a duvidar, injustamente, da sua confidência,
porque o meu problema se tornou de repente mais de fé do que de prova.
Custava-me a crer que a mulher que amava, com quem me relacionava numa harmonia
estável, quase perfeita, cometesse uma traição infame. Para mim, nada
justificava o seu procedimento; nada havia acontecido no quotidiano das nossas
vidas que pudesse fundamentar a atitude dela, e por isso desconfiei, ao
princípio, da denúncia feita por essa amiga. Só me lembro de lhe ter perguntado:
tens a certeza do que estás a dizer?, e de ela me responder tenho.
Sabe, doutora, entre uma verdade
dolorosa e uma suave mentira eu prefiro a verdade dolorosa. Aprendi isto em
casa dos meus pais, com a minha mãe. O meu pai era um homem cuja vida parecia
regulada por impulsos que lhe vinham não sei de que regiões mais fundas de si
mesmo. Embora manifestasse uma permanente atitude de bonomia, era de difícil acesso.
E tinha outra característica, não sei se boa se má: nunca se irritava, nunca se
ia emocionalmente abaixo, nem mesmo quando perdia dinheiro ao jogo ou quando as
suas aventuras amorosas, extraconjugais, lhe corriam mal. A minha mãe sabia de
tudo, mas quase sempre se calava. E aquilo doía-me. Algumas vezes, não muitas,
ela ganhava coragem e confrontava-o, utilizando um tom suave, quase inaudível:
por favor, António, diga-me a verdade. Coisa a que o meu pai respondia,
invariavelmente, num registo de voz idêntico, baixinho e muito calmo: que
verdade quer saber de mim?
O que é a verdade para si? É a que
os outros lhe vêm contar? Nessas alturas, ela emudecia, afastava-se dele e ia
chorar para o quarto, em contido silêncio. Deixe-me no entanto dizer que os
meus pais nunca tiveram conversas destas à minha frente; nem destas nem de outras
que pudessem, talvez na opinião deles, perturbar a ascética educação do filho.
Eu escutava-as, sim, mas atrás das portas. Um dia ouvi a minha mãe dizer ao meu
pai: António, prefiro a verdade, por mais dura que seja, à mentira piedosa. E
você está farto de saber isto. Pela última vez lhe peço que me diga o que se
passa consigo, quem sabe se comigo, porque eu não sei, mas diga, por favor,
imploro-lhe que me diga. A este pedido magoado ele respondeu com a sua habitual
frieza glacial: a minha vida é transparente, Ofélia, e por isso nada tenho para
lhe contar. E por aí se ficou». In José Manuel Saraiva, A Terra Toda, Porto
Editora, Porto, 2011, ISBN 978-972-004-327-6.
Cortesia de PEditora/JDACT