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«(…) O tempo de Júlio
Dinis não está imune às mudanças e aos conflitos de uma sociedade em plena
ruptura consigo própria, mas não reflecte mais do que aquilo que nela havia de
novo numa óptica placidamente burguesa e ironicamente sentimental. Nele
encontramos já uma consciência sensível da temporalidade romanesca. Contudo,
tanto esse tempo, como o de Camilo, são ainda como um rio que se espraia ou
precipita, pano de fundo onde se recortam destinos, com as suas peripécias
dolorosas ou festivas, com seus desenlaces felizes ou naufrágios, um rio que
desliza naturalmente para a sua foz. O tempo é onde se vai e onde se está, por
analogia com o espaço. Como tudo o mais, o tempo, mesmo o mais negro, não
escapa à ordem da Providência. O sentimento de precariedade do destino, a
percepção dos acontecimentos como intrinsecamente afectados pelo tempo não
precisava de ser descoberta: constitui o fundo imemorial da expressão lírica ou
trágica da existência.
O Romantismo de nada
mais viveu que da consciência exacerbada da existência como tempo, sem refúgio
clássico na Eternidade, ou da fuga titanesca para diante configurada num tempo
redimido como Avenir, que não é mero
futuro, mas tempo de gloriosas plenitudes. A ficção de Eça de Queirós conserva
as marcas desta vivência do tempo próprio do Romantismo, não apenas como obra
fascinada pela tentação, mal disfarçada pelo seu carácter paródico, de se instalar
em épocas onde tudo era ainda como que imune à desilusão dos tempos modernos
ou, ao contrário, de se imaginar alegoricamente, em tempos, lugares utópicos, como
sucedâneos de sonho do velho e para sempre perdido Paraíso. Mas a vivência do
tempo que estrutura a sua visão do mundo, aquela que a temporalidade romanesca
encarnará de maneira inédita entre nós, releva da crítica e do naufrágio da
ilusão romântica de um tempo ainda afectado de conteúdo transcendente.
Não são os relógios.
agora atentos à premente pressa dos homens, nem o relógio cósmico de Deus que contam o nosso verdadeiro tempo. Para
ser claro, o Tempo, quer no sentido mais abstracto, quer na sua configuração
enquanto tempo da História, quer
sobretudo como tempo humano, não tem outra essência
que a da temporalidade imanente da nossa
vida, dos seus actos, dos seus sonhos. Mas em Eça de Queirós, o Eça de Queirós original, essa vivência comporta uma
temporalidade mais insólita, a do hiato,
tempo suspenso, vazio ou esvaziado. Em suma, aquela temporalidade que se
exprime no tédio, na monotonia, no não-tempo no interior do tempo. Eça de
Queirós, debaixo da aparência de ficcionista da vida real, da sociedade
burguesa e do teatro passional por ela determinado, nos seus aspectos triviais ou
nos seus mecanismos grotescos, quer dizer, repetitivos, a exploração do cliché linguístico traduz como nada mais
a essência de uma temporalidade sem
interioridade nem invenção, como um tempo vivo a exigiria, foi
fundamentalmente o romancista desse tempo parado,
desse longo bocejo do ser que sob a forma satírica significava que o tempo, o
tempo, não só saíra dos seus gonzos como
o de Hamlet, seu personagem paradigmático, mas deixara de ter sentido, quer
dizer, um conteúdo assumidamente inteligível.
Como na visão do mundo
de Dante, há vários círculos na expressão do Tempo na obra de Eça de Queirós. A
mais exterior é a que integra a ideia-imagem de um tempo histórico dilatado,
primeiro pelas descobertas arqueológicas do século, as de Champollion e de
Schliemann ou de Renan, mas igualmente pelo conceito darwinista da Evolução
que, mais além do puro horizonte histórico, põe em causa o lugar do homem no
antigo plano da Criação. Este alargamento temporal, que é no plano da mitologia
e da memória cultural do Ocidente, desactualização da cronologia e da mitologia
bíblicas como até então se compreendiam, importa menos à Geração de 70 e, em
particular, a Eça de Queirós, como revolução epistemológica, do que como dado
estético, pretexto para viagens fantásticas ou fantasistas nesse tempo-espaço
dilatado, como seria o das Memórias de um
átomo se tivessem sido mais do que ficção diferida ou o do Mandarim». In Eduardo Lourenço, As Saias de
Elvira e Outros Ensaios, Gradiva, Lisboa, 2006, ISBN 989-616-151-8.
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Gradiva/JDACT