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O Primeiro Voo do Falcão
«(…) O rei prosseguia os
seus planos, sendo caro à nação apenas em duas coisas: a guerra de conquista e
as benesses à nobreza. De resto, foi sempre um homem de gostos e hábitos sóbrios.
Com o irmão a pressioná-lo e a fazer disparates, persistia no esquema da conquista
de Tânger. Assim, ele cedeu ao irmão que lá foi de cruzada, perdendo duzentos
homens e ficando prisioneiros mais de cem. O rei, em Ceuta, quedou tristíssimo
mas não teve coragem de aplicar um correctivo ao irmão que, mais morto que
vivo, viu o mito do grande guerreiro ir por água abaixo. Assim, confortou-o
dando-lhe como genro o seu próprio filho, fazendo da sobrinha, logo que
chegasse a altura, a Rainha de Portugal! Fernando ainda consegue a proeza da
conquista de Anafé e regressa a Portugal. Durou pouco tempo. Mas a sua morte em
Setembro de 1470, por causas desconhecidas, foi precedida por outras e pelo nascimento
de seu filho Manuel, em Maio de 1469. O seu corpo ficou em Setúbal, no mosteiro
de S. Francisco e, depois, a mulher, a jovem dona Beatriz, trasladou-o para o
da Conceição de Beja. Acabara assim a sua vida mais um irmão do rei Afonso V,
mas antes perdera dona Catarina, muito jovem, num quente mês de Junho. Triste e
alquebrado, o rei deixara Jorge Costa executar, como a irmã pedira, o seu
testamento. Ficou a Princesa no seu túmulo na capela da Senhora da Graça, em
Santo Elói, de Lisboa, já Jorge fora nomeado bispo de Évora. No ano anterior
nascera a Afonso uma sobrinha que, mal sabia o pobre monarca, iria causar-lhe
grandes problemas e apressar, com a tristeza da renúncia, o fim dos seus dias.
A irmã casada com aquele Henrique rei de Castela, gordo, louro, de olhos
salientes e pés enormes, a bela rainha morena, dera à luz uma menina,
Joana, cujo destino lhe seria adverso, mesmo muito cruel também.
Pela Borgonha morrera o
duque Filipe. Ficara viúva a tia Isabel, que nada queria com o rei de Portugal,
e o seu filho Carlos sucedia ao pai. Pio II por lá se finava em Ancona... O
primo da Borgonha pedia em casamento a priminha portuguesa, aquela linda Joana
de cabelos ruivos e olhos verdes-esmeralda, e ela, nos seus treze anos gráceis,
não se negara ao enlace..., mas o pai não dera resposta à questão. Não tencionava
perder tão cedo a filha que estava sob a orientação de mestres escolhidos e da
tia Filipa que a adorava e visitava frequentemente, saindo do seu retiro de
Odivelas. João, o Príncipe, ia bem. Dez anos sábios: grego, latim, filosofia,
matemática, astronomia, ciência militar, cartografia. Um bom e atento aluno,
firme, pensativo, meditabundo às vezes, mas um rapaz normal, da sua idade.
Morria em Arévalo a viúva do infante João, aquele tio do rei que fora o grande
amigo do infante Pedro. Filha do duque de Bragança, viera de junto de sua filha
dona Isabel, quando morreu do coração. Menos uma tia e um leve desgosto para o
irmão Bragança que a não via há anos. O velho duque, o pai, o que levara na alma
a morte do irmão em Alfarrobeira, esse, falecera antes. Até esse desgosto o seu
feliz destino lhe furtara. Finara-se em Chaves, com noventa anos, satisfeito
por ter levado sessenta anos a construir a casa nobre mais forte do Reino, convencido
da importância da sua longa existência.
Mas para lá disso tudo, ao menos dona Isabel, a de Urgel,
assistira ao fim do inimigo que parecia ter iludido, pela avançada idade, a morte,
uma luz de esperança brilhou no horizonte despedaçado da reclusa de Santa Clara.
Estava-se em 1463. Anos antes, o rei de Portugal retirara ao primo Pedro a pena
de desterro, apesar das diatribes do velho Bragança, e ele acompanhara-o a África.
Achava-se em Ceuta quando recebeu embaixadores de Barcelona. Morrera o Príncipe
de Viana e os povos da Catalunha entendiam que o juramento de fidelidade a João
II de Aragão acabara. Desejavam outro rei. Até tinham recorrido ao poltrão
Henrique IV de Castela, quando se recordaram que existia um descendente de
Jaime de Urgel e do Príncipe de Portugal! Um descendente por sua filha mais
velha, herdeira do trono, dona Isabel! Ofereciam-lhe a Coroa. Duas galeras,
partidas de Barcelona, trouxeram os dois representantes do Conselho do
Principado e da Generalidade, Francisco Ranies e Rafael Julia! Uma carta chegou
às mãos de dona Isabel a pedir-lhe a autorização para o filho ser rei da Catalunha,
aquele filho poeta, numismata, historiador, rico colecionador de obras raras,
que herdara da família o espírito cavalheiresco e a força que a cultura
confere! Ele seria um bom rei. Tinha a certeza. Orgulhosa, respondeu, como rainha,
como filha de Jaime de Urgel, que sim. Catalunha teria o seu rei, herdeiro
legítimo, como o poderia ter sido o seu desditoso pai. Naquele filho jovem ela
iria rever-se e justificar o pai, a avó e o marido! Penso que dona Isabel,
naquele dia, foi a mais feliz das mulheres. Pedro, então, depois da mãe, escreve
aos conselheiros de Barcelona a aceitar a Coroa, e entra na bela cidade, cujas
muralhas ainda são romanas, em Janeiro do ano seguinte. Em Junho de 1466, dois
anos e meio depois, finava-se em Granollers, Pedro IV de Aragão, minado pela
tísica. Deixou uma biblioteca vasta, um retrato e a sua pedra tumular. Nas
mãos, um livro. E o sonho da mãe morreu também, nesse dia de Junho, como uma
estrela que se apaga. Para sempre. Toda a sua vida fora esse terrível passar de
féretros, de lutos, de lágrimas. Só a morte também a poderia suster e amparar.
E foi o que aconteceu». In Seomara Luzia da Veiga Ferreira, Crónica
Esquecida d’el rei João II, Editorial Presença, Lisboa 1995, 4ª edição, Lisboa
2002, ISBN 972-23-1942-6.
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