«(…)
A um conhecimento grosseiro, a uma experiência sempre limitada do elemento
humano poderá atribuir-se-me o que porventura haja para além ou fora deste
aspecto. Mas, numa melhor hipótese, tal facto poderia derivar da própria força
dos acontecimentos e, consequentemente, da obrigação a que o cronista se
imporia de os penetrar no máximo das suas possibilidades.
Se é
negra a realidade com que me encontrei entendo que a ela me não deveria ter
furtado, por mais despatriados que possam parecer os fenómenos que a compõem.
Razão, pois, porque ouso apresentar a Rapariga dos Fósforos, que, até.
por ser obra de aprendiz, não terá talvez a filiação literária duma Joaninha
de Olhos Verdes, seja-me perdoado o arrojo da comparação.
Mas
por outro lado, ocorre-me muitas vezes atentar, e com sincero pavor, na vaga hibridez
que nos foi imposta (a nova terminologia da angústia), e daí insisto em não me
negar a enfrentá-la. Viera-me um vislumbre do génio do grande Garrett, e a
Rapariga dos Fósforos seria facilmente reconhecida entre as muitas costureiras
de cave, burguezinhas de lar negado, colegiais e futuras esposas de ofício que
tanto vemos por aí…
Assim
fica, quanto mais não seja para mim, como uma tentativa que acarinho porque
cansidero que, perto ou longe dos nossos vínculos tradicionais, ela existe.
Infelizmente existe. E o maís trágico, porém, é que a sua presença. se reveste
de significado real, motivo que me pareceu imperioso para que a considerasse
objecto de literatura». In J. C. P. Maio de 1952
Entretanto
continuavam a olhar um para o outro, sorrindo levemente, sem palavras. Beijaram-se,
e de novo tombavam para o lado e ficaram assim, as bocas abertas entreabertas,
os olhos a luzirem. Estava calor e muita luz no pequeno quarto do hotel barato.
O sol forte que rompia entre as frestas do estore espalhava-se pelas paredes
nuas e pela roupa revolvida da cama. O moço suava, o suor corria-lhe no queixo
e nas axilas misturado com a saliva dos beijos. Passou-lhe as mãos pelas faces,
com uma ternura súbita: é indecente, estou a molhar-te com suor. Querido,
segredou ela, e sorria. Então ergue-se no leito, limpando-o carinhosamente com
a ponta do lençol enquanto ia dizendo querido, oh querido e deixava que os
dedos dele lhe percorressem ao de leve o corpo. E agora?, brincou». In
José Cardoso Pires, Histórias de Amor, [Livro proibido e censurado], colecção
Os Livros das Três Abelhas, Editorial Gleba, Lisboa, 1952, Arquivo Nacional da
Torre do Tombo.
Cortesia
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